Sociedade

O cotidiano da juventude no meio rural tem no trabalho, na família, na educação e no lazer suas principais manifestações

A juventude tem expressivo contingente na região e sua identidade tem sido revalorizada. Seu cotidiano no meio rural tem no trabalho, na família, na educação e no lazer suas principais manifestações

Pátria das Águas1, a Amazônia contempla uma complexa sociobiodiversidade que se materializa em verdejantes matas, caudalosos rios, diversificadas fauna e flora, natureza essa que abriga uma multiplicidade de populações, culturas e tradições. Povos das águas, das florestas e dos campos amazônicos - ribeirinhos, extrativistas, seringueiros, indígenas, quilombolas, assentados da reforma agrária, pescadores, agricultores familiares etc. - afirmam sua identidade reproduzindo historicamente seu modo de vida, de produzir e existir sociocultural e ambientalmente.

É no mosaico de paisagens contrastantes em seus múltiplos aspectos - ambiental, econômico, social, cultural ­ que as juventudes amazônicas tecem seu cotidiano, sua identidade e seus projetos de vida.

A juventude é uma categoria plural, portanto, não é unívoca, de valor universal, homogênea. Compreender a juventude exige reconhecê-la como uma construção histórica e cultural, inscrita numa cartografia social mais ampla, em que a definição de faixa etária é um dos elementos constitutivos.

No Brasil, atualmente, a juventude é definida na faixa etária de 15 a 29 anos, sendo o Plano Nacional de Juventude2 um dos principais instrumentos de tal definição. É expressivo o contingente de jovens na Região Amazônica3. Dados do IBGE (Censo 2000)4 indicam que 26,5% da população amazônica é jovem, espacializada nos estados, como demonstrado na Figura 1.

As juventudes amazônicas só podem ser compreendidas na dinâmica complexidade que marca a região, cujo processo histórico de antropização foi pontuado por conflitos e o contexto atual é agudizado por contradições e desigualdades.

É pertinente a análise de Carneiro (2005) de que é "(...) importante termos em mente a impossibilidade de traçar um perfil da `juventude rural' brasileira ou de construir um padrão, um tipo ideal, do `jovem rural' (...)" . Assim, também não é possível traçar um perfil da juventude rural amazônica, mas há muitos elementos que potencializam reflexões sobre a juventude numa perspectiva multidimensional, entendida como grupos cambiantes, situados em espaços sociais e temporalidades que lhes atribuem múltiplos significados.

Cotidiano e identidades  

O trabalho, a educação, a família e o lazer marcam o cotidiano de jovens. A importância da tríade trabalho-educação-família na centralidade da vida dos jovens é analisada por Freire (2002, 2007), Pinto (2001), Unicef (2002), entre outros.

O cotidiano dos jovens da Amazônia rural tem no trabalho, na família, na educação e no lazer suas principais manifestações. A dinâmica do trabalho na região é marcada pela dependência da terra, das águas e das florestas. A labuta no trabalho dos sistemas de cultivo e de criação, no extrativismo, na pesca, é base constitutiva da produção familiar.

A cultura das comunidades rurais amazônicas tem sido reinventada na tensão tradição-modernidade, incorporando elementos materiais e simbólicos da vida urbana; mas preservando também elementos que os diferenciam da cidade, a exemplo da simbiótica relação com a natureza, da organização econômica e das relações sociais, do manejo dos recursos naturais.

No território em que tecem seu cotidiano, sua identidade é (re)valorizada. O depoimento5 de um jovem da ilha é revelador da afirmação da identidade ribeirinha:

O que é ser jovem ribeirinho?

Pra mim é morar aqui na ilha, bem próximo da margem do rio... é morar numa área de várzea, onde a água sempre sobe em cima da superfície e sai... tem um modo de vida próprio, ele é bem diferente de pessoas que vivem em Belém, ele vive a vida mesmo, vive pra vida, tanto é que ele não se preocupa em ter coisas, ter bens, assim materiais, não se preocupa com isso; saúde e filho para o ribeirinho é tudo (risos), ele não se preocupa com grandes coisas, não, então esse é o modo de vida para ele, ele tem o que ele tem e pronto...
(Edinei, jovem da Beira do Rio Guamá, ilha do Combu, Belém/Pará/Brasil

Os depoimentos evidenciam o jogo das diferenças que perpassam a constituição da identidade cultural dos sujeitos, e a educação escolar, o currículo, exerce significativa influência na (re)produção dessas identidades. As culturas hegemônicas são enfatizadas na maioria das instituições escolares, impondo o silenciamento das culturas ou vozes dos grupos sociais minoritários e/ou marginalizados, que não dispõem de importantes estruturas de poder, ou são estereotipadas ou deformadas, na tentativa de qualificar suas resistências (Santomé, 1998). Os depoimentos de uma jovem ribeirinha e uma assentada da reforma agrária são reveladores desse jogo identidade-diferença.

Tu te reconheces como ribeirinha?
Não, tem gente que fala que a gente é caboclo, que a gente fala mal, se veste mal, mas é totalmente ao contrário, a gente se veste muito bem, fala bem, é educado...

O que é ser ribeirinha?
Na opinião de quem vive em Belém, ser ribeirinho é ser inferior.
(Suzana, jovem do Igarapé do Combu, ilha do Combu, Belém/Pará/Brasil)

Eu vivo a minha juventude no campo, pois me orgulho de ser uma colona, que vivo na ciência agora, que eu nunca sonhei. Não tenho vergonha de minha cultura, eu sou uma mulher que trabalho no campo (...) Na minha juventude estou lutando por um futuro, de conseguir muitas coisas para minha comunidade (...) Eu me sinto privilegiada em morar no campo, por nossas culturas, nossos jeitos de ser, um ribeirinho da mesma terra (...).
(Valdeniria, jovem assentada da reforma agrária, Aveiro/Pará/Brasil)

A identidade cultural perpassa a dimensão simbólica, valorativa, normativa e organizativa da sociedade. As juventudes amazônicas revelam no seu cotidiano e em seus projetos de vida traços identitários que os singularizam na cartografia sociocultural juvenil, mas também os inserem no circuito de culturas hegemônicas.

Juventude e projetos de vida
A juventude no campo não é apenas diversão. É canoa, é roça, é carroça, é foice, cutelo e facão. É trabalhar a morrer para não faltar o comer. É um desespero falta óleo e tempero. É vida sem esperança as coisas boas nunca alcança. É vida sem destino acabou o sonho de menino. É casar adolescente é filho descontente. É a vida sem projeto, pois nada dá certo. É a vida em forma de fera para aqueles sem Pronera.
(Jonas, Jovem assentado de reforma agrária, Aveiro/Pará/Brasil)

Os projetos de vida dos jovens no campo e na cidade têm no trabalho e na educação a sua centralidade. Novaes (2003), entre outros, revela em seus estudos a pertinência dessa assertiva.

O poema do jovem Jonas revela que a vida da juventude do campo não é uma idealização abstrata, romântica, mas vivenciada na concretude da realidade, que é complexa, contraditória e desigual. Nesse cenário a educação desponta como uma possibilidade vital de melhoria de qualidade de vida.

Desafios do Estado e da sociedade

Tributários de lutas, martírios, conquistas e resistências, os povos da região têm protagonizado mobilizações e conquistas e os/as jovens têm imprimido suas marcas. A afirmação de sua condição de sujeitos de direitos tem impulsionado a organização e a mobilização social de jovens no Brasil e na Amazônia.

A histórica invisibilidade da juventude rural tem sido rompida. Cercas que impunham processos de exclusão acentuados aos jovens das águas, das florestas e do campo têm sido superadas por iniciativas do poder público em diferentes esferas - federal, estadual e municipal -, aliadas à intervenção militante de entidades e movimentos sociais.

O governo federal no mandato do presidente Lula instituiu a Secretaria Nacional da Juventude, o Conselho Nacional da Juventude. Programas têm sido implementados, a exemplo do Programa ProJovem Campo - Saberes da Terra, Pronaf Jovem, Minha Primeira Terra, entre outros.

Gritos da Terra, Marchas, Festivais, Intercâmbios são inequívocos da força da mobilização dos movimentos sociais no país, em que os jovens têm empunhado suas bandeiras de luta. Juventudes do MST, Contag, Ceffa's, Fetraf, Pastoral da Juventude Rural, Movimentos Negros e Quilombolas, entre outras, são expressões dos jovens em ação.

Muitos são os desafios e entre eles se destaca a necessária formulação e implementação de políticas públicas capazes de superar as assimetrias regionais construídas historicamente no país. As análises de Novaes (2007) e Sposito e Carrano (2007) são importantes na compreensão de políticas públicas de juventude no Brasil.

O Relatório da OEI6 (Waiselfisz, 2006) revela que a melhoria dos Índices de Desenvolvimento Juvenil (IDJ) constitui um desafio na Região Amazônica. Dos sete estados da região, nenhum está entre os dez melhores índices do país e três deles estão entre os seis menores IDJ do Brasil.

Na Conferência Nacional de Juventude promovida pelo governo federal em 2008, articulada com a sociedade civil, os mais de 2 mil jovens elegeram entre suas prioridades a educação do campo, com ênfase na garantia do acesso ao ensino médio. A questão ambiental também foi uma das prioridades definidas. As Resoluções da Conferência são a base do Pacto pela Juventude, instituído pelo governo federal.

As múltiplas identidades e diversidades juvenis foram afirmadas como prioridades na conferência. Assim, jovens negros e negras, a juventude do campo, os povos e comunidades tradicionais foram reconhecidos como prioritários nas políticas públicas de juventude.

Elejo um fragmento do poema de Eduardo Galeano para expressar o sentido de luta e esperança que a juventude tem pautado:

A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.  
Eduardo Galeano7.

Jacqueline C.S. Freire é docente-pesquisadora da Universidade Federal do Pará, consultora Internacional do Unicef na Guiné Bissau/África, ex-coordenadora Estadual do Fórum Paraense de Educação do Campo e do Programa ProJovem Campo -­ Saberes da Terra [email protected]


Referências

Carneiro, Maria José. "Juventude Rural: projetos e valores" In: Perfil da Juventude Brasileira. Fundação Perseu Abramo, 2005.
Freire, Jacqueline C.S. Juventude Ribeirinha: identidade e cotidiano. Dissertação de Mestrado em Planejamento do Desenvolvimento. Belém: UFPA, 2002.
Freire, Jacqueline e CASTRO, Edna. "Juventude na Amazônia Paraense: identidade e cotidiano de jovens assentados da reforma agrária" In: Castro, Elisa G. e Carneiro, Maria José (Orgs.). Juventude Rural em Perspectiva. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.
Nascimento, Ivany Pinto. As representações sociais do projeto de vida dos adolescentes: um estudo psicossocial. São Paulo: PUC. 2002 (Tese de Doutorado).
Novaes, Regina. "Juventude, exclusão e inclusão social: aspectos e controvérsias de um debate em curso" In: . Freitas, Maria V. e Papa, Fernanda de C. (Orgs.). Políticas Públicas em Pauta. São Paulo: Cortez; Ação Educativa: Fundação Friedrich Ebert, 2003.
____________. "Políticas de juventude no Brasil: continuidade e rupturas. In: Juventude e Contemporaneidade. Brasília: Unesco, MEC, Anped, 2007.
Sposito, Marília e Carrano, Paulo. "Juventude e políticas públicas no Brasil" . In: Juventude e Contemporaneidade. Brasília: Unesco, MEC, Anped, 2007.
Unicef - Fundo das Nações Unidas para a Infância. A Voz dos Adolescentes. Brasília: Unicef, 2002.
Waiselfisz, Julio J. (Coord.). Relatório de Desenvolvimento Juvenil 2006. Brasília: OEI, 2006.