Sociedade

Para o psicanalista Jurandir Freire Costa, homossexualismo é uma palavra preconceituosa.

Uma palavra nova é capaz de criar uma nova consciência? Para o psicanalista Jurandir Freire Costa, sim. Prova disso é que há cerca de quatro anos, este pernambucano de 47 anos, residente no Rio de Janeiro, sacudiu as consciências dos brasileiros ao divulgar o termo "Lei de Gerson" para designar a ideologia do "levar vantagem em tudo", pela qual se pauta uma certa (anti) ética da vida pública no país. Foi numa longa entrevista à revista IstoÉ, por ocasião de seu também famoso artigo "Narcisismo em tempos sombrios" (coletânea Tempo do Desejo, org. Heloisa R. Fernandes, Brasiliense, 87) que Jurandir analisou o comportamento que o jornalista Maurício Dias batizou como a "Lei de Gerson". Hoje, não há nenhum brasileiro, alfabetizado ou não, que não saiba o que ela significa.

Atualmente, o psicanalista, professor do Instituto de Medicina Social da UERJ e autor de vários livros, como Psicanálise e contexto cultural (Ed. do Campus, 89), continua preocupado em criar palavras que alterem a percepção e o comportamento das pessoas; principalmente face ao preconceito. Defensor da pluralidade, da tolerância - e consequentemente da democracia -, Jurandir vem estudando a história dos preconceitos em relação ao homossexualismo numa pesquisa financiada pela Fundação Ford que vai desembocar no estudo das atitudes dos vários grupos homossexuais ante a ameaça representada pelo vírus HIV. E, para começar a desmontar o preconceito, Jurandir Freire Costa propõe o uso do termo homoerotismo para designar a preferência sexual por indivíduos do mesmo sexo.

Que diferença faz dizer homossexualismo ou homoerotismo?
É uma tentativa de evitar o uso preconceituoso do termo. Homossexual foi uma palavra inventada para descrever pejorativamente a experiência afetivo/ sexual de pessoas do mesmo sexo. Homoerotismo diz que a mesma experiência pode ser vista de uma outra forma. Tentar eliminar o preconceito usando um termo viciado seria tão difícil quanto falar de maneira neutra (do ponto de vista do valor) sobre o migrante nordestino pobre, chamando-o de "paraíba".

Esta neutralidade é possível? Não há sempre uma carga afetiva e valorativa, mesmo que inconsciente, sobre todas as palavras?
Claro que há! Você tem razão! Homoerotismo não é uma palavra neutra, do ponto de vista dos valores. Com ela pretendo revalorizar, dar outro peso moral às experiências afetivo-sexuais que, hoje, são pejorativamente etiquetadas de homossexuais. Quando mudamos os conceitos, mudamos os problemas e com eles as interpretações que damos de certos fatos. Por exemplo, para falar sobre a experiência dos trabalhadores da indústria, já se deixou de chamá-los de "os pobres" ou simplesmente de trabalhadores, para chamá-los de operários. Com isso, deslocou-se o enfoque do problema do eixo pobre/rico para um outro enfoque que é o da articulação do modo de produção. Quando você fala de classe social e não de "povo", você está querendo propor outra leitura de um fato. Mas é preciso não esquecer que, sem a prática, a simples mudança de vocabulário seria um mero adorno, fadada à ineficácia.

Fale um pouco sobre a visão discriminatória que pesa sobre a palavra homossexual.
Homossexualismo é uma palavra que sublinha a imagem de relação sexual "normal" vs. "anormal", criada no século 19 com o interesse de afirmar um modo de vida burguês centrado na idéia de família, na idéia de que o homem deveria viver exclusivamente para a esfera privada e ser pai de família, deixando a vida pública para os técnicos, os competentes. O mesmo valia para a mulher, que deveria aprender, sobretudo e principalmente, a só saber e a só querer ser mãe. Além disso, a sacralização desse comportamento pressupunha o desempenho sexual heteroerótico, e pretendia afirmar dois valores: primeiro, a superioridade das classes burguesas sobre as classes populares, associando a estas últimas as formas de sexualidade tidas como "inferiores" ou "promíscuas", em relação à sexualidade enquadrada na formação familiar - casamento e filhos. Em segundo lugar, essa valorização procurava diferenciar o europeu branco colonizador das práticas dos colonizados, considerados racial e culturalmente inferiores. Todo o debate médico e higiênico sobre o homossexualismo no século 19 tinha como argumento básico a idéia de que o instinto sexual humano evolui, de tal modo que sua perfeição é encontrada no comportamento burguês e familiar, e todas as outras variações são consideradas desvios e ilustradas pela conduta sexual da plebe ou das "raças inferiores". Isso se encontra em qualquer manual de sexologia do século passado.

Como é que essas teorias explicam o desregramento sexual característico da aristocracia?
O comportamento aristocrático era tido como decadente. Era o tipo de comportamento que o Iluminismo - os valores da inteligência e da razão burguesa - denunciara. Veja como se dá a articulação ideológica: porque o valor central da revolução burguesa era a razão, a pedra de toque das teorias médicas sobre os desvios sexuais foi a teoria da degenerescência. Ela explica os desvios em relação à norma dizendo que as chamadas "perversões" são um produto do predomínio dos instintos sobre a inteligência. Uma razão bem orientada só poderia chegar à conclusão de que a única modalidade de realização afetivo/sexual é aquela que se realiza na família burguesa, tal como nós a conhecemos. Onde a razão não reconhece isto, ela está degenerada. Freud discutiu seriamente estas concepções. Seu grande opositor teórico foi a teoria da degenerescência. Freud desvendou a perversão da razão burguesa. "Homoerotismo" é um termo que indica que existe, no repertório da sexualidade humana, a possibilidade de pessoas do mesmo sexo se sentirem atraídas sem que isso implique doença, anormalidade ou perversão. Este fato indica só duas coisas: que o desejo humano, como já escreveu Freud, é contingente; e que uma sociedade é ou não capaz de aceitar e tolerar essas condutas minoritárias em função do coeficiente de democracia que ela apresenta. Uma sociedade cujo credo fundamental é que os indivíduos são livres por direito para procurar toda e qualquer forma de felicidade individual, desde que isso não implique atentado à integridade física e moral do outro, tem que admitir a possibilidade de relação homoerótica entre indivíduos maiores de idade que consentem na realização do ato sexual ou amoroso.

Qual sua posição em relação ao conceito de perversão? Homossexualismo deve ser considerado perversão, no sentido clínico da palavra?
Freud sempre titubeou quanto a isso. Ora dizia que o homossexualismo era uma perversão - mas são alusões minoritárias na sua obra -, ora chamava de inversão, que era o termo preferido dos franceses. Isto é importante, porque para os franceses, na idéia de inversão, todas as qualidades morais da pessoa são consideradas intactas, e só sua escolha sexual é alterada. A idéia de perversão implica a completa degeneração moral do perverso. Freud foi mais soft quanto a isso desde o início. Além disso, ele teve poucos casos de análises clínicas de "homossexuais", e apenas um estudo teórico completo do que se supõe seja o homossexualismo clínico, que é o estudo sobre Leonardo da Vinci. Mesmo assim, este é um texto em cuja conclusão Freud contradiz o que afirmara no inicio, ou seja, diz que Leonardo era um obsessivo. Freud, por sua massa de estudos, nunca chegou a se afinar totalmente com o pensamento médico-higienista do século 19, que dizia que havia uma personalidade ou uma doença que era a homossexualidade. Quando se lê Freud com atenção vê-se que, em todos os casos em que há alusão ao "homossexualismo", ele considera esse aspecto como uma faceta da personalidade e não como o centro da personalidade. Em Três ensaios sobre a sexualidade, de 1905, Freud já mostra que a heterossexualidade é tão problemática quanto a homossexualidade.

Seria bom você conceituar perversão. Você retoma o sentido moral dessa palavra?
Perversão é um termo que está associado à perversidade, à maldade. Quando a sexologia positivista quis desvincular a conotação moral da idéia de perversão, colocou no lugar algo mil vezes pior. Em vez de desvio moral, de vício, estava-se diante de desvios da natureza - e sabemos que para o positivismo a natureza detém as leis da verdade absoluta. Eu digo que quando nós, psicanalistas, pensamos em perversão, introduzimos aí uma dimensão ética, sim. A dimensão de que uma conduta é perversa quando ela vai de encontro aos ideais morais. Então o que se pode perguntar é: que ideais morais são esses que fazem com que o homoerotismo seja considerado perverso? Respondo que não são democráticos. Digo que os ideais morais que classificam o homoerotismo como perversão são ideais totalitários. De intolerância diante da diferença, de desrespeito às expressões minoritárias da sexualidade. Nesse ponto é que eu reverto o raciocínio. Se você toma esta vontade de uniformizar os corpos e os afetos, ou de impor ao outro uma forma de prazer que você diz que é universal, em suma, essa vontade de manipular o outro como objeto ou instrumento para a idealização de sua imagem narcísica, isto é que é perversão. A perversão está no comportamento preconceituoso, totalitário, e não na expressão das sexualidades minoritárias, o que não significa que entre os indivíduos com relações homoeróticas você não encontre relações perversas, mas isso você encontra igualmente entre os heterossexuais.

No campo específico da sexualidade, o que é a perversão?
Para responder razoavelmente a esta questão teria que recorrer à linguagem técnica da psicanálise. A rigor, diria que a teoria da perversão que mais me satisfaz teórico e eticamente no presente é a que Contardo Calligaris vem discutindo a partir de Lacan. Mas, como a referência à teoria teria o inconveniente de trazer o leitor não praticante da psicanálise para um terreno árido, guardo da concepção de perversão o aspecto mais relevante para o modo de viver democrático. Considero que a imposição pela violência do modo de satisfação de um indivíduo sobre o outro é perversa. Esta concepção é importante porque um dos argumentos do conservadorismo é dizer que se você admite o homossexual, por que não admite a pedoflia, a necrofilia, as várias formas de sadismo sexual? A diferença é que você tem nessas outras formas de satisfação sexual um abuso de poder: o uso de um corpo que não pode dizer não. O mesmo acontece em qualquer forma de estupro, seja homo ou hetero.

Existe uma forma de sofrimento psíquico que você considera típica das pessoas com preferências homoeróticas?
Eu diria que não. A única forma de sofrimento que é comum a todos os sujeitos homossexuais é aquela que vem de causas externas, do preconceito, da discriminação e das dificuldades que isso traz para os que são discriminados.
Mas a psicanálise diz que as neuroses, que são formas de sofrimento psíquico, se organizam em torno da sexualidade. Se você diz que não há um sofrimento próprio da homossexualidade, você está derrubando uma premissa freudiana importante, não?
Bom, mas a gente poderia dizer que, para a psicanálise, a neurose se estrutura em torno da sexualidade no sentido mais amplo do termo, e não em torno da genitalidade e do objetivo da reprodução. O que eu estou criticando é a idéia de que, por si só, a atração de uma pessoa por outras do mesmo sexo seja um traço indicativo de doença, neurose ou perversão. Há tantas formas de sofrimento neurótico entre "homossexuais" quanto entre "heterossexuais". Do contrário teríamos que pensar que os heterossexuais não são neuróticos, ou são todos neuróticos de um mesmo tipo.

E quanto ao conceito de denegação? No texto sobre neurose e psicose, Freud afirma que os "perversos" são mais felizes porque conseguem clivar o ego sem ter que sacrificar nem o id nem a relação com a realidade externa.
Quando Freud fala da recusa e da clivagem do ego na perversão, os exemplos que ele usa não são os do homoerotismo, são os do fetichismo. Podemos argumentar que o homoerotismo também está centrado na representação do falo do outro como um fetiche, mas esta é uma idéia posterior a Freud. A idéia de que o pênis do parceiro é um fetiche contra o horror da castração não vem diretamente de Freud. Pelo contrário, a interpretação preferencial dada por Freud ao homoerotismo foi ou a idéia do amor ao duplo narcísico ou da identificação com a mãe (Leonardo da Vinci). Em segundo lugar, a idéia de recusa (da diferença entre os sexos), mesmo que se aplicasse ao homoerotismo, como quis uma parte da psicanálise pós-freudiana, também se aplica a casos de neurose e, no texto sobre fetichismo, Freud cita um caso de neurose obsessiva como exemplo deste mecanismo de defesa. Não há, portanto, base teórica consistente para a idéia de que o homossexualismo é uma perversão.

Os militantes homossexuais falam muito em livre escolha da sexualidade de cada um. Isto não é uma mistificação? Alguém escolhe a sexualidade?
A literatura mais crítica de defesa militante do homoerotismo não fala em escolha. Quem quer escolher uma sexualidade que leva à discriminação? Jefrey Weaks, um autor inglês militante do homoerotismo, contesta a idéia de escolha dizendo que ela é idealista e voluntarista; a gente não escolhe nem mesmo se vai se apaixonar ou não, quanto mais a forma. O que se pode dizer é que existem preferências, inclinações, e que a história de vida dos sujeitos acaba levando-os a isto. O heterossexual também não escolhe ser hetero, embora esta seja uma sexualidade bem mais cômoda, mais adaptada. Também sou crítico quanto a certas correntes de militância gay. Por exemplo, a corrente que acha que só existe uma identidade homossexual autêntica, honesta, que é a identidade gay. O gay é só um tipo de identidade homoerótica com formas de organização em moldes de vanguarda política ou de idéias, o que o caracteriza basicamente como militante da autenticidade. Alguns também acreditam que existe um homossexual cuja essência e verdadeira expressão foi reprimida, historicamente, e agora deve se libertar. Outros acham que a única maneira de ser verdadeiramente homossexual é assumindo os padrões de conduta, sentimento e visão de mundo deles.

Uma variação da visão heterossexual do século 19, certo?
Como eu não acredito em uma essência do homoerotismo, acho que há dezenas de maneiras das pessoas se sentirem homoeroticamente inclinadas, e não pode haver um só padrão de realização disso. Vou além. Não deve haver uma norma anti-gay, nem uma norma gay. É o mesmo que se impor um mesmo padrão hetero - o padrão familiar para todos; e sabemos que este padrão ultimamente também anda bagunçado, cheio de variantes, desvios etc.

Eu tenho notado, principalmente nesta década pós-HIV, outro padrão de conduta homossexual extremamente bem comportado, superadaptado. Você nota isto?
Na pesquisa que venho desenvolvendo sobre as atitudes de grupos homoeróticos frente à ameaça representada pelo HIV, vejo três tipos básicos de reação das pessoas frente ao preconceito, que vão influir muito no tipo de resposta diante do risco da Aids. Há um primeiro grupo que tem um padrão de resposta que eu chamaria de oitocentista, que internaliza inteiramente o preconceito e se recusa a realizar a inclinação e o desejo homoeróticos. Sofrem muito, atacados internamente pela interiorização do preconceito e externamente pela solicitação ideológica do discurso da "liberação". Quando as pessoas os etiquetam como "reprimidos", não se dão conta de que também estão falando em nome de uma ideologia que diz que a demanda da sexualidade é absolutamente central para a realização da felicidade individual, e que a obediência ao desejo sexual é imperativa se você quiser ter uma vida equilibrada. Do ponto de vista de uma história das mentalidades, ela está no pólo oposto ao do preconceito criado no século 19, mas cai em outro preconceito. Eu me recuso a admitir isto. Acho que para algumas dessas pessoas, a realização de outros objetivos que não o da satisfação de fantasias homoeróticas pode permitir o alcance de equilíbrio e satisfação na vida. Sabe-se que a ideologia da liberalização está ligada ao que Herbert Marcuse chamou de dessublimação repressiva no Ocidente, que é a integração da sexualidade no padrão de consumo de uma sociedade de massas apolitizada, e isto mesmo considerando as críticas de Foucault a Marcuse. Há outros padrões de defesa frente ao preconceito e ao contágio. Falei do primeiro tipo, que escolhe certos ideais morais em detrimento da realização de seu desejo individual. Estes se previnem contra a Aids muito bem; participam do preconceito e evitam o contato, encontrando em outras facetas da personalidade (e da sexualidade, em sentido mais amplo) sua realização pessoal. O segundo é o padrão gay, já falei dele. Faz da luta contra a Aids uma espécie de símbolo da luta contra a discriminação das minorias, pelos direitos civis e pela afirmação de uma identidade que eles aprovam e que historicamente mostrou ser a estratégia de construção de identidade mais eficiente do ponto de vista do combate à discriminação. Se não fossem os gays, hoje não estaríamos tendo essa conversa. O terceiro grupo é mais complicado. Como ele não tem nenhuma característica marcante ou padrão regular de identidade, eu o descrevo como o grupo dos que se apóiam na privatização das regras morais como norma de ação. Estes indivíduos se encontram presos numa dupla injunção, entre o velho e o novo. Eles participam do mundo de ideais da moral burguesa do século 19 e da liberação sexual dos anos 60 e 70, que os justifica enquanto transgressores da norma. Mas aí se encontra um problema. porque a decisão diante do apelo à relação homoerótica, que contém um certo grau de risco de contágio, vai se fazer através de critérios morais ou psicológicos puramente circunstanciais ou de momento. Por exemplo, um gay é radical em relação ao uso de preservativos e desenvolve meios de erotizar esta situação criando novas modalidades eróticas em que o preservativo não atrapalhe - isto é, revoluciona a cultura sexual em defesa de sua identidade e de sua sobrevivência. Em contrapartida, os sujeitos desse terceiro grupo, que eu chamo de grupo da "regra privada", vão decidir se abrem mão ou não do preservativo em função de critérios de confiança, ou pela ficção imaginária de que são capazes de controlar as etapas do orgasmo (não ejacular). Nos casos mais dramáticos, preferem correr o risco do contágio letal em vez de abrir mão da promessa da realização afetiva em moldes pré-Aids. E como se eles pensassem: "Se é para viver uma vida sem satisfação afetiva (nos moldes do amor romântico); se eu encontro alguém e a desconfiança quanto à saúde dele pode colocar em risco o meu ideal de afetividade, prefiro correr o risco de morrer".

Fale um pouco sobre a pesquisa atual.
Ainda estou trabalhando nesta pesquisa sobre as reações dos grupos homoeróticos frente ao risco de contágio. Comecei puxando o fio histórico do conceito de homossexualismo aliado à idéia de perversão. O conceito de homoerotismo visa desfazer a associação entre o homossexual e o perverso. Encontrei entre homoeróticos tanta diversidade quanto entre heterossexuais. O objetivo da pesquisa é verificar como se pode oferecer subsídios para uma política cultural de informação sobre a situação dos grupos homoeróticos diante do risco. O material sobre o qual trabalhei foi organizado pelo antropólogo Richard Parker. Ele fez a pesquisa de campo do ponto de vista da antropologia e eu acrescentei minha experiência clínica para fazer uma leitura psicanalítica. A Fundação Ford financiou, mas a idéia da pesquisa foi do Departamento de Ciências Humanas do Instituto de Medicina Social da UERJ. Já estou de olho na próxima pesquisa, que vai ser a respeito das formas de violência que incidem sobre as crianças de classe média no Brasil.

Como a pesquisa sobre literatura entrou neste seu trabalho? Eu assisti sua conferencia sobre a ética e me lembro que você se referiu a Proust, a Gide...
Além da ideologia médica do século 19, a literatura foi o outro ponto de apoio que utilizei para entender a construção da idéia de homossexualismo. É interessante perceber que todos os sujeitos homoeróticos que a gente conhece na vida real são "netos" de Proust e André Gide; baseiam suas identidades em figuras imaginárias criadas pelo prodígio das mentes desses escritores. Eles preencheram psicologicamente, deram verossimilitude humana aos tipos criados pelo discurso médico. Mas, é claro, eles não escaparam do seu tempo; criaram tipos que não fugiam da ideologia do século 19, e advogaram a idéia de uma universalidade do homoerotismo, de um único tipo psicológico comum - Gide, para absolver a infâmia e Proust para condenar. Proust sabia que não existia uma universalidade da homossexualidade, e tudo o que escreveu era dissimulação. Mesmo adotando uma versão negativa da discriminação, ele está muito mais próximo do pensamento moderno sobre a identidade homoerótica, exemplificado em Jean Genêt. A dissimulação era a seguinte: o homoerotismo de Proust aparecia como uma vingança contra o mundo dos Guermantes, um ataque à aristocracia - era uma das armas de que ele dispunha para ajustar contas com suas antigas idolatrias aristocráticas depois do caso Dreyfus. Foi a partir da decepção que Proust sofreu com o anti-semitismo da aristocracia francesa - revelado no caso Dreyfus -, que ele começou a escrever para desnudar essa aristocracia e se vingar dela.

Para terminar, gostaria que você dissesse alguma coisa sobre o Herbert Daniel, que lutou tanto contra a discriminação dos homoeróticos e dos portadores de HIV no Brasil, e morreu de Aids.
Do Herbert Daniel, acho que poderia acrescentar pouco ao que já disse na contracapa do livro que ele fez em parceria com Richard Parker, Aids - A terceira epidemia. Herbert me evoca a figura trágica, divina e bela do andróide do filme Blade Runner, que, mesmo tendo consciência de que sua vida fugia como "lágrimas na chuva", amava-a tanto que a doou a seu perseguidor. Ele foi um exemplo do que Proust chamou uma vie donnée; uma vida que se entrega ao outro, porque entende, apaixonadamente, intensamente, que a vida é um bem em si. O mau-encontro ou a má-fortuna, como diriam os gregos, quis que ele se fosse antes do tempo. Mas penso que seu testemunho ficou quando aprendemos a conhecer a vida, aprendemos ao mesmo tempo a desejar uma sociedade mais justa para todos e mais tolerante para com as infinitas possibilidades que cada um de nós tem de buscar e achar a própria felicidade.

Nota:  Em 1894, Alfred Dreyfus, oficial judeu do Estado-Maior francês, foi acusado e condenado à deportação perpétua para a Ilha do Diabo por espionagem em favor da Alemanha.

Reviravoltas sucessivas mostraram os erros do processo e a suposta inocência de Dreyfus nunca reconhecida oficialmente.

O caso, que teve como pano de fundo o anti-semitismo e a questão republicana, dividiu a opinião pública francesa, envolvendo personalidades como o escritor Emile Zola. A discussão dos fatos e de seus desdobramentos permanecia viva anos mais tarde, às vésperas da Segunda Guerra.

Maria Rita Kehl é psicanalista e membro do Conselho de Redação da revista Teoria e Debate