Sociedade

Setores intolerantes da sociedade ligados às religiões respondem com violência para se contrapor às recentes conquistas da população LGBT

A onda de violência contra LGBTs no país inteiro tem aumentado seu volume e intensidade, mostrando que há um ódio quase que fora de controle e feito vítimas, inclusive, heterossexuais

Manifestação repudia ato contra aprovação da lei que pune homofobia

É preciso estabelecer o confronto político-cultural diante dessa cruzada homofóbica. Foto: Fabio Pozzebom/ABr

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Eu fico a me perguntar de onde vem tanta raiva homofóbica, ódio aos homossexuais, tanta intolerância, tanta aversão aos que pretensamente escapam aos padrões da dita ou mal dita normalidade. Será que recorrer a Freud ajudaria, explicaria? Talvez. E se algumas correntes dedicadas a essa cruzada, de matriz medieval, fossem a Freud talvez se surpreendessem com as descobertas, se quisessem descobrir o fundo de tudo isso. Nenhuma dessas correntes, no entanto, se disporá a isso, por indisposição preliminar com o autor, por impossibilidade existencial, por medos atávicos.

Esse tsunami conservador, afora o que vem de mentes castrenses situadas ainda nos tempos da ditadura, é proveniente, em boa parte, de setores considerados cristãos, e nem adianta nominar todos eles, porque conhecidos. Constituem um amplo espectro, a juntar-se numa frente destinada a combater os homossexuais e a incentivar a homofobia, por mais que alguns jurem não fazê-lo. Estariam apenas salvando a família brasileira de quaisquer anomalias, como pretendem rotular as orientações sexuais diversas das pessoas. Não creio, no entanto, que tais ataques venham somente de cristãos. E devem ser analisados num contexto mais amplo.

Para além das formulações teóricas contra a homossexualidade, são muitos os ataques físicos contra homossexuais, violências inomináveis, agressões variadas, e isso não se transforma em escândalo. Há um preocupante silêncio ou, senão isso, uma espécie de aceitação tácita. Uma notícia aqui, outra acolá, e a vida segue, como se tudo isso fosse da rotina, como se fosse aceitável. Como se os homossexuais estivessem recebendo o que merecem. Triste, mas verdadeiro. E isso em um momento em que o movimento pelos direitos de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais cresce em todo o país, com impressionantes movimentações de massa, como a que ocorre em São Paulo todo ano, e em vários outros Estados, e, também, registre-se, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de reconhecer os direitos civis de casais homossexuais. Seria um momento positivo para a população LGBT, e é, mas há o outro lado da moeda, trágico.

Vivemos sob clima pesado

Não creio possamos tratar isso como algo de somenos importância. E nem creio devamos subestimar isso do ponto de vista da cultura e da política. Digo que existe um caldo de cultura atrás disso. O caldo de cultura da intolerância, a tentativa sempre de descartar todos os que não estejam enquadrados nos códigos conservadores da normalidade. O clima é tão pesado que um pai e um filho foram agredidos porque estavam abraçados em público. A agressão decepou a orelha do cidadão. Claro, foram agredidos porque havia a certeza de que eram homossexuais. O pai esperava a namorada, e enquanto isso demonstrava o carinho pelo filho.

Deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) em manifestação contra a lei  que pune homofobia |Foto: Fabio Pozzebom/ABr

É um clima tão pesado que espectros da área militar, investidos de mandato parlamentar, se dão ao direito de agredir de maneira chula os homossexuais, sem que nada aconteça. O Parlamento também faz ouvidos de mercador, e resiste à possibilidade de criminalizar a homofobia, e essa resistência perpassa vários partidos, até mesmo parcelas de alguns considerados de esquerda. Pesado de tal forma, que jovens, que tenham aparência de homossexuais, são agredidos a golpes de pau nas ruas, sem quê nem pra quê, sem que encontrem explicações para isso, sequer razoáveis, salvo o fato de terem, se tiverem, orientação sexual diversa da considerada normal. E numa proporção assustadora, muitos são mortos, assassinados pura e simplesmente, não raramente com requintes de crueldade.

Cabe dizer que há um sentimento homofóbico na sociedade. Não podemos ignorar isso. O sentimento integra o cardápio de valores de nossa sociedade.  Pesquisa realizada em 2009, pela Fundação Perseu Abramo em parceria com a fundação alemã Rosa Luxemburg Stiftung, indicou que a população brasileira acredita que existe preconceito contra travestis (93%), contra transexuais (91%), contra gays (92%), contra lésbicas (92%), contra bissexuais (90%). A maioria, no entanto, atribui o preconceito aos outros, não a si própria, curiosamente. Pela sucessão de agressões recentes, não parece que o problema seja dos outros.

E de onde viria esse sentimento? Quem sabe, de heranças ancestrais, cujas raízes podem estar fincadas no pior que exista da tradição religiosa. Ou então viria de estímulos histórico-culturais mais recentes, provenientes de um caldo de cultura que vem do nazifascismo e que tem se firmado especialmente na Europa dos últimos tempos.

O episódio da Noruega expressou isso com sangue, tragicamente, com dezenas de vítimas inocentes sacrificadas no altar da intolerância. O jovem assassino lamentavelmente encarna uma cultura de direita, presente na sociedade e atualmente em diversos governos europeus. Cameron, Sarkozy e Merkel são expressões destacadas do pensamento de direita e revelam isso, destacadamente, por uma impressionante islamofobia.

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Há uma aversão aos diferentes, a todos os que não sejam brancos europeus. Um ódio aos imigrantes. Aos negros, aos muçulmanos, aos árabes, o que for diverso da ideia do europeu professado por essa ideologia que, por menos que se queira, guarda parentesco com o nazismo. Tem um quê de arianismo em tudo isso. E, sem dúvida, tem tudo a ver com racismo. Pretende-se uma limpeza étnica. Ou podemos também dizer que é um retorno a Torquemada. Sem tirar, nem por. É uma triste revisitação do passado, no que ele tem de pior, obscurantista, cruel, perverso.

Alguns poderão dizer “que exagero”. Que o sentimento homofóbico, que provoca tantas violências, tantos assassinatos, não tem a ver com o que acontece com a Europa. Creio que tem. É a revelação, no plano da política, de uma visão de direita do mundo. Poderíamos, mas para mim seria temerário pela escassez de conhecimento teórico nesse campo, ir fundo no terreno da psicanálise e buscar outras motivações. Que medo estaria por detrás de tanta raiva aos homossexuais?

Para além disso, das análises especialmente psicanalíticas, que não devo adentrar por insuficiência teórica, arrisco-me a dizer, a Tony Negri e Giuseppe Cocco, que há um medo da multidão. Quanto mais a multidão vai para as ruas, a multidão de homossexuais, mais aguça o sentimento homofóbico presente na sociedade. A multidão gay aterroriza. E por que aterroriza? Essa multidão só tem ido às ruas em festa. E em luta. Luta em defesa de seus direitos, direitos do humano, já consagrados pela ONU, e cada vez mais fixados pela Justiça no Brasil.

A Noel Rosa, a multidão gay não quer converter ninguém, só quer mostrar que faz samba também. E que não vai abrir mão de sua existência, do direito de proclamar o amor que pulsa em seu coração. Que mal faz o amor homossexual a qualquer fundamento da sociedade? Que prejuízos ele traz? A multidão gay só quer dizer que toda maneira de amar vale a pena.

Estamos diante de uma luta político-cultural. Que envolve a trincheira dos valores morais, no sentido amplo da palavra. E é nesse terreno, no terreno da cultura, que se estabelece a hegemonia de uma sociedade. Essa batalha em torno de valores morais deu-se durante a campanha de 2010, com o impressionante ataque que o candidato derrotado, José Serra, fez contra direitos das mulheres brasileiras. Temos que desenvolver a luta política também no campo dos valores.

Não é possível qualquer conciliação com as consequências que a homofobia provoca. Ela é retrógrada e é politicamente perigosa, é caldo de cultura para o desenvolvimento de outras intolerâncias. Caminha na contramão de uma sociedade fraterna, solidária, que seja capaz de congregar a todos, sem a pretensão de que sejam iguais. A homofobia guarda parentesco com o racismo, com todo tipo de exclusão, com o ódio aos diferentes, com a repulsa aos direitos humanos, se coloca contra tudo que um programa político democrático-libertário defende.

Não creio que aos partidos de esquerda, todos, adeptos do Estado laico, defensores da democracia e do socialismo, entusiastas da diversidade, do respeito às diferenças, seja possível ficar indiferentes à luta contra essa cruzada homofóbica, de corte tão conservadora e, não custa usar a palavra que parece antiga, tão reacionária. Essa cruzada nos leva de volta, como já disse, ao medievo trevoso. É preciso reagir politicamente a ela. Estabelecer o confronto, no sentido político-cultural. Opor a ela o Estado laico, o Estado de direito democrático, o direito da escolha das pessoas – todo mundo é livre para desenvolver sua orientação sexual, desde que não prejudique outra pessoa, e ponto.

O que fazer?

Se quisermos tratar as coisas no âmbito religioso, cabe proclamar abertamente que nenhuma religião tem o direito de impor seus valores a quem quer que seja. Nenhuma. Todas as religiões devem ser respeitadas. Todas têm o direito de defender os seus pontos de vista. Nunca de pretender que o Estado siga suas diretrizes. Nunca. Isso acabou já há muito tempo, e talvez possamos lembrar o marco da Revolução Francesa. O Estado democrático tem a obrigação de garantir a liberdade de crença, de todos. E tem a obrigação, também, como Estado laico, de não se submeter a nenhuma. Essa é uma característica do Estado moderno. Não podemos retroagir.

E depois de lembrar isso, defendo que é fundamental a luta dos partidos de esquerda e de todos aqueles que professam o respeito aos direitos humanos em favor da diversidade em sentido amplo, e do direito dos homossexuais, no particular, já que esses têm sido vítimas de tanta violência. O silêncio não é boa companhia nesses casos. E creio que a questão é muito séria para que nos deixemos levar apenas por razões circunstanciais – como a de dizer que a sociedade é conservadora, e que nós devemos tomar cuidado em relação ao assunto para não nos prejudicarmos politicamente. Um pouco de Iluminismo não faz mal a ninguém. Nessa luta, não dá para bancar Pôncio Pilatos.

Uma parcela da Câmara Federal, lamentavelmente, também entrou na cruzada homofóbica, e alguns movimentos parlamentares tiveram a marca da chantagem, sempre liderados por grupos religiosos de variada extração, todos de matriz cristã e envolvendo parlamentares de várias siglas partidárias. Eu não imaginava mais ver esse tipo de ação político-religiosa, pressões de credos religiosos pretendendo constranger o Estado a se curvar diante de suas crenças e convicções. E sei que há uma multidão de cristãos que não comunga com esse tipo de política.

Devemos proclamar que, à falta de iniciativa legislativa, foi corretíssima a decisão do STF de estender direitos a casais homossexuais. Devemos defender a criminalização da homofobia. Sustentar os direitos legítimos dos gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. Assim como defendemos os direitos das mulheres, dos negros, dos índios e de todo o povo brasileiro. Somos diversos, temos diferenças de variada natureza, e devemos saber respeitar e valorizar as diferenças, e com esse respeito, construir uma sociedade cada vez mais solidária, justa e fraterna.

O caminho do silêncio, da omissão política é grave. Ninguém que comungue do pensamento de esquerda ou, ao menos, que se perfile teoricamente numa visão iluminista do mundo, pode se dar ao luxo de ficar de braços cruzados, silente. É inevitável a lembrança de Maiakóvski.

Na primeira noite, eles se aproximam e colhem uma flor do nosso jardim, e não dizemos nada.

         Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada.

         Até que um dia, o mais frágil deles, entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua e, conhecendo o nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada”.

A mim me basta, e creio que a todo o pensamento progressista e de esquerda, que o Estado continue laico, que se dê a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. É pouco: voltar à Revolução Francesa e a seus princípios fundadores. Só isso. Insista-se também: não é possível abrir mão da luta constante, permanente, cotidiana, em defesa da diversidade, do respeito às diferenças de qualquer natureza. Isso é da essência do pensamento democrático, da continuidade da afirmação da democracia. É uma luta própria da revolução democrática em curso no Brasil.

Emiliano José é jornalista, escritor, deputado federal (PT-BA) www.emilianojose.com.br, ([email protected])

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