Sociedade

Instrumento para proteção dos direitos das mulheres, a Lei Maria da Penha necessita de parcerias entre setores da sociedade para de fato ser eficiente

A negação histórica da existência de um povo palestino, necessária para afirmar o status da terra como res nullius, como uma terra sem povo destinada ao povo a que fora prometida, mantém-se constante até hoje e é acompanhada da vilificação daqueles que estão “do outro lado”, daqueles menos civilizados, dos radicais, dos amantes da morte

Ato de sindicalistas no Distrito Federal em favor da Lei Maria da Penha

Ato de sindicalistas no Distrito Federal em favor da Lei Maria da Penha. Foto:Marcelo Casal/ABr

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Em 7 de agosto de 2011 a Lei Maria da Penha completou cinco anos. Como em todo aniversário, é um tempo de balanços e reflexões sobre acertos e possíveis correções de percurso. Considerada um marco no processo histórico de reconhecimento da violência contra as mulheres como problema social e político, fruto das demandas do movimento de mulheres e feministas, a Lei Maria da Penha é uma conquista da sociedade brasileira.

Algumas informações ajudam a situar a relevância da nova legislação. O texto legislativo está adequado à Convenção para Punir, Prevenir e Erradicar a Violência contra as Mulheres (Convenção de Belém do Pará, OEA, de 1994), à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Cedaw, ONU, de 1979) – ambas assinadas e ratificadas pelo governo brasileiro – e à Constituição Federal (Brasil, 1988). Entre as inovações tem destaque o artigo 6º, no qual consta: “A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação de direitos humanos”.

A definição de violência é abrangente e envolve agressões, abusos e constrangimentos de natureza física, sexual, psicológica, patrimonial e moral (artigo 7º). As ações podem ocorrer de forma isolada ou combinada, entre pessoas unidas por vínculos de afeto, que podem ser atuais ou já terem sido desfeitos, que podem ou não coabitar o mesmo espaço doméstico, mas são sempre participantes de relações de dominação e hierarquia estruturadas a partir da desigualdade de gênero. Outra inovação da lei: as relações interpessoais independem da orientação sexual.

O Brasil foi um dos últimos países no continente a ter uma legislação específica para o combate e a prevenção da violência doméstica e familiar. Embora sua aprovação seja considerada tardia em relação ao histórico do continente1, a Lei Maria da Penha se diferencia daquelas existentes nos demais países da América Latina por duas características: foi a primeira a incorporar a perspectiva de gênero em seu texto e se aplica especificamente à proteção dos direitos das mulheres e o faz a partir da conciliação de medidas na esfera do direito penal e cível, combinadas com políticas intersetoriais.

Inicialmente divulgada como mais rigorosa no campo penal, a Lei Maria da Penha traz também medidas de proteção, assistência e prevenção, explicitando o entendimento de que apenas as decisões resultantes da intervenção tradicional da Justiça Penal são insuficientes para enfrentar a complexidade que caracteriza a violência baseada em gênero. Aplicadas em conjunto, essas medidas permitem que mulheres em situação de violência doméstica e familiar recebam atenção integral pelos setores tradicionalmente ligados à Justiça – Polícia, Judiciário, Ministério Público e Defensoria –, assim como atendimento nas áreas da saúde, assistência social e psicológica, entre outras políticas e programas de enfrentamento à violência contra as mulheres. Para sua execução, a Lei Maria da Penha não depende apenas de instâncias judiciais, mas se apresenta como uma política pública que demanda a integração entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, que devem articular ações, políticas e programas para sua efetividade. O objetivo comum entre todos os setores e seus profissionais deve ser a garantia de acesso à Justiça e a direitos para as mulheres.

Essas são algumas das inovações presentes na Lei Maria da Penha que a tornam especial. Do ponto de vista formal, representa um enorme avanço para o reconhecimento dos direitos das mulheres e contribui com medidas para seu fortalecimento mediante o acesso à Justiça e aos direitos da cidadania.

Com tantas novidades, era esperado que a nova legislação encontrasse resistência e obstáculos para sua implementação integral, uma vez que sua aplicação implica transformações sociais para o reconhecimento da violência baseada no gênero como um entrave ao desenvolvimento pleno, livre e saudável das mulheres. Implica também mudanças institucionais, para que as medidas legais sejam adotadas com o apoio de políticas públicas cujo objetivo deve ser a promoção da igualdade de gênero.

Ministro José Eduardo Cardoso com Maria da Penha, a vítima que deu nome à lei | Elza Fiuza/ABr

Nesse sentido, se existem muitas razões para comemorar a existência dessa legislação e os avanços que representa em termos de reconhecimento formal dos direitos das mulheres, é preciso também reconhecer as dificuldades enfrentadas por muitas mulheres que procuram acionar os dispositivos da lei em seu favor.

A seguir, são apresentados alguns dos obstáculos já identificados por pesquisas para a aplicação da Lei Maria da Penha. O inventário é longo, mas, pelos limites deste artigo, foram selecionados para ilustrar os desafios que ainda precisam ser vencidos para que as comemorações sejam ainda maiores.

Um deles tem a ver com a falta de estrutura com que as instituições policiais e as instâncias judiciais vêm desempenhando suas tarefas. A lei amplia as competências da polícia. Além da retomada de procedimentos como o inquérito policial e as prisões em flagrante – atribuições típicas da Polícia Judiciária –, a polícia é responsável pela elaboração e encaminhamento dos pedidos de medidas protetivas, procedimento de natureza cível. Cabe também à polícia acompanhar a mulher para lugar seguro ou serviço de saúde, caso tenha necessidade de atendimento imediato, assim como dar suporte nos casos de reintegração ao domicílio (após o afastamento do agressor) ou retirada de seus bens e documentos.

A lei prevê ainda modificações na estrutura dos Tribunais de Justiça e recomenda que sejam criados Juizados de Violência Doméstica e Familiar, com competência híbrida para processar e julgar as ações criminais e as cíveis, quando relacionadas às medidas protetivas. Outra recomendação se refere à constituição de equipes multidisciplinares que possam assessorar os juízes em suas decisões, através da análise psicossocial da situação de violência relatada pelas mulheres.

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As novas competências são acompanhadas por alterações nos fluxos de pessoas e documentos no segmento Polícia-Judiciário, com repercussões sobre o trabalho do Ministério Público e da Defensoria. Em 2010, pesquisa realizada pelo Observatório da Lei Maria da Penha2, sobre as condições das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs) para a aplicação da Lei Maria da Penha, mostrou que as unidades situadas nas capitais contavam com estrutura física, recursos materiais e humanos pouco adequados às novas atribuições previstas em lei. O estudo constatou poucas melhorias depois de a legislação entrar em vigor, uma vez que não foram realizados investimentos consistentes por parte dos respectivos governos estaduais, inviabilizando a adequação dos profissionais à frente dos serviços aos novos trâmites e ao volume crescente de procedimentos que circulam nos espaços dessas instituições policiais.

No Judiciário, a mesma pesquisa apurou que os Tribunais de Justiça ainda não se adaptaram ao perfil da nova legislação e a criação de instâncias especializadas para a aplicação da lei segue em ritmo lento e, muitas vezes, limita-se a uma reacomodação das estruturas existentes, sem a criação de postos de trabalho nem mudanças na organização judiciária para comportar os juizados com competência híbrida no julgamento de ações cíveis e criminais. Não há notícia de que tenha havido melhoria substancial nessas instâncias, apesar do aumento no número de Juizados de Violência Doméstica e Familiar.

Outro obstáculo que afeta a implementação integral da Lei Maria da Penha é a forma tradicional como essas instituições têm desempenhado suas funções, atuando isoladamente e com pouco diálogo com os demais serviços que devem contribuir para que as medidas protetivas, de assistência e de prevenção tenham efeitos concretos para as mulheres. A legislação recomenda que as instituições judiciais atuem de maneira articulada com os serviços que oferecem atendimento médico, psicológico, jurídico, entre outros. Esta é, na verdade, outra grande inovação da Lei Maria da Penha: a intersetorialidade como base da atenção integral para o fortalecimento das mulheres, para que possam sair da situação de violência através de caminhos adequados às suas realidades, necessidades, capacidades e expectativas.

Entre os serviços que formam a rede de atenção para mulheres em situação de violência, também se verifica um cenário caracterizado pela precariedade material, falta de profissionais capacitados e motivados para o trabalho e invisibilidade institucional (Observe, 2011)3. As poucas tentativas de articulação de redes intersetoriais já identificadas no país são iniciativas de profissionais comprometidos com os direitos das mulheres e se configuram como projetos ou programas, e não como políticas institucionais. As disputas políticas entre diferentes instâncias de governo e entre campos de saberes e conhecimentos são obstáculos que ainda necessitam de maior observação e discussão para sua superação.

Formalmente, o país conta com a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (2005) e com o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (2007), mas no dia a dia dos serviços essas iniciativas capitaneadas pela Secretaria de Políticas para Mulheres ainda são muito distantes e os paradigmas da capilaridade, intersetorialidade e transversalidade de gênero – que dão sustentação e sentido a essas políticas – permanecem como conceitos que carecem de estratégias, métodos e recursos financeiros para sua operacionalização.

Os obstáculos não se limitam a uma inadequação de infraestrutura. Existem ainda aqueles relacionados à capacitação dos funcionários. Especialmente nas instâncias policiais e judiciais, persiste o não reconhecimento da violência doméstica e familiar contra a mulher como uma violação de direitos humanos e dos efeitos da desigualdade baseada no gênero sobre a vida dessas mulheres que vivem em situação de violência. A oferta de cursos de capacitação tem sido constante em todo o país, com o objetivo de melhorar a aplicação da lei e o atendimento oferecido às mulheres nos diferentes serviços. No entanto, até o momento não foram realizadas avaliações sobre como os conteúdos são apropriados e aplicados no dia a dia das instituições.

Por fim, a Lei Maria da Penha é um instrumento para a proteção dos direitos das mulheres, e reconhecê-las como sujeito de direitos é fundamental. Por isso, este artigo não pode deixar de mencionar os obstáculos que elas vivenciam na busca desse reconhecimento.

Pesquisas de opinião realizadas nos últimos cinco anos mostram o crescimento da conscientização social sobre a violência contra a mulher como um problema de políticas públicas e conhecimento sobre a existência de uma legislação especial para a proteção de mulheres em situação de violência. A mais recente4 revela, no entanto, uma face importante desse conhecimento pouco problematizada: a qualidade da informação acessada pelas mulheres. De acordo com o levantamento, 94% dos entrevistados (homens e mulheres) afirmam conhecer a lei, mas apenas 13% consideram conhecê-la muito bem.

O acesso à informação é um direito e também condição para o processo de fortalecimento das mulheres. Esse processo compreende várias etapas, que são vivenciadas de maneira particular pelas mulheres, marcadas por suas experiências subjetivas e influenciadas por diferenças de raça, geração, classe, formação ou situação ocupacional, religião, entre outras características que podem contribuir ou dificultar o acesso aos direitos da cidadania. Melhorar as estratégias de informação é também um desafio que precisa ser superado com urgência.

Existem muitas razões para comemorar os cinco anos da Lei Maria da Penha. Cantada em verso e prosa, essa lei tem contribuído para mobilizar a sociedade brasileira para o debate sobre a violência contra a mulher – e esse já é um avanço significativo. A experiência em diversos países tem demonstrado que é mais fácil criar leis do que implementá-las. No caso da Lei Maria da Penha, sua aplicação depende de parcerias entre diferentes setores da sociedade e não existem fórmulas para o trabalho a ser, ainda, executado. O que já se sabe, no entanto, é que essa relação deve se pautar pelo diálogo e pelo desenvolvimento de políticas que coloquem em primeiro plano a igualdade de fato entre homens e mulheres.

Wânia Pasinato é socióloga, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP) e do Pagu-Núcleo de Estudos de Gênero (Unicamp). [email protected]

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