Sociedade

As segundas intenções são estender o poderio militar do Brasil para além do território nacional

Incapaz de formular um projeto nacional de transição da ditadura militar vara um governo democrático e civil, o presidente José Sarney, logo após assumir a Presidência da República, aprovou um projeto do então Conselho de Segurança Nacional denominado "Calha Norte". Elaborado sigilosamente nos gabinetes militares, o projeto tem como principal objetivo ocupar, "sob o enfoque do desenvolvimento e segurança", a região norte das calhas dos rios Solimões e Amazonas.

Abandonado à própria sorte devido à crise econômica dos anos 80, o desgastado binômio "segurança e desenvolvimento" - razão de ser de muitos projetos dos governos militares e princípio que fundamenta a geopolítica brasileira - foi resgatado, respaldado e avalizado pelo civil Sarney. O projeto estabelece um plano de ocupação de uma faixa de 160 km de largura nos limites do Brasil com a Guiana Francesa, Suriname, Guiana, Venezuela e Colômbia. Ao todo são 6,5 mil km de fronteiras, representando 1,2 milhão de Km2, 1/4 da Amazônia legal, quase 15% da área total do país. Nessa faixa vivem 1,6 milhão de pessoas.

"A filosofia do projeto é fortalecer a presença brasileira na área de fronteira, para organizar as sociedades que ali se instalarem." O argumento é do general Rubens Bayama Denys, chefe da Casa Militar de Sarney e coordenador do projeto que começou a ser implantado em meados de 1986. Não se sabe até agora quanto foi gasto, mas em 86 havia uma previsão orçamentária de 10.787.165 OTNs até 1990, incluindo também a construção de quartéis.

Entre as ações justificadas pela comissão interministerial encarregada da implantação (formada pelos ministérios militares, pela Seplan, Interior e Itamaraty) estão: a aplicação de toda legislação referente ao comércio com o Paraguai; a criação de consulados na fronteira; a ampliação da atuação da Funai, visando impedir a criação do "Estado Independente dos Ianomami"; e a intensificação das presenças da Marinha, Exército e Aeronáutica na região, através da construção de pelotões, aeródromos e postos fluviais.

Segundo o general Bayama Denys, "esse planejamento, além de objetivar o fortalecimento das expressões de poder nacional, não deveria deixar de incluir o relacionamento com os vizinhos do Norte". E acrescenta: "Seria recomendável, pelas razões citadas, ampliar as relações bilaterais, especialmente com a Guiana e o Suriname. É preciso lembrar que a aproximação com esses países apenas atingirá níveis satisfatórios na medida em que o peso específico do benefício político dela resultante prevaleça sobre as possíveis dificuldades comerciais e financeiras, entre outras. Além disso, pode-se esperar que a integração desse espaço geoeconômico ao resto do país venha reforçar o relacionamento com os vizinhos, podendo surgir o Brasil como opção mais confiável do que quaisquer outros alinhamentos". Em outras palavras: esses países passariam a ser como o Paraguai - satélites do Brasil.

Tudo isso de forma sigilosa, à revelia do povo e do Congresso, como se ainda estivéssemos em plena ditadura. O próprio texto reconhece e tenta justificar: "Sob o aspecto da confidencialidade, cabe explicar que a prioridade governamental, sendo acordada à Calha Norte, poderia vir a suscitar tanto expectativas domésticas exageradas quanto temores infundados nos países limítrofes. Muitos dos temas abordados, tais como reformulação de políticas indigenistas, retomada da demarcação de fronteiras ou localização de instalações militares, requerem tratamento sigiloso, pelo menos nos estágios iniciais da análise, em virtude da alta sensibilidade política". Nos anos 70 os planos expansionistas dos geopolíticos brasileiros eram ostensivamente propagandeados. Vivíamos a etapa do "Brasil potência". Agora, os projetos se desenvolvem de forma clandestina.

Um segredo mal guardado

O segredo ficou guardado pouco mais de um ano, até que o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e alguns jornais tiveram acesso ao documento, tornando-o público. Em dezembro de 86, a Igreja divulga seu documento: "A Igreja frente ao Projeto Calha Norte". E afirmava: "O projeto acelerará o processo de destruição da cultura indígena, além de ser um desperdício de recursos financeiros, materiais e humanos que poderiam ser destinados a obras de infra-estrutura e apoio à população da Amazônia". Além disso, denunciava que o Calha Norte atingirá 50 mil índios de 33 nações, distribuídas em 51 aldeamentos de fronteiras e outras 16 nas calhas dos rios, especialmente no Alto Rio Negro.

Única instituição no país a levantar a voz contra o Calha Norte, a Igreja denunciava também o caráter de nítida ocupação militar da região amazônica. D. Erwin Krautler, presidente do Cimi e bispo do Xingu, rebate com altivez as acusações fantásticas de que a Igreja estaria apoiando a criação do "Estado Independente dos Ianomami": "São levianas (as acusações) e camuflam interesses econômicos espúrios de grupos nacionais e transnacionais que pretendem usurpar as terras dos índios, em um autêntico crime de lesa-pátria".

Mesmo assim, o Calha Norte vem sendo implantado, obviamente não no ritmo programado pelos militares e por Sarney. Freado parcialmente pela crise, seu objetivo vai se consolidando, fechando, assim, o círculo de um longo planejamento estratégico que busca tornar realidade a "vocação continental" do Brasil.

Até agora foram construídos oito pelotões de fronteira, estando previstos mais dois para este ano. Estradas e aeródromos estão sendo asfaltados, sendo que estes permitirão o pouso de aviões militares Bufalo C–115. Embora não esteja nos planos do governo a recuperação por inteiro de nenhuma das grandes estradas construídas durante o "milagre econômico", o Calha Norte prevê a conservação e a abertura de um trecho da Perimetral Norte, que, correndo ao longo das fronteiras dos países da região, tinha um claro objetivo militar e acabou sendo abandonada por causa da crise econômica.

Há mais pontos polêmicos relacionados a outros projetos do governo e que têm a ver com o desenvolvimento do Calha Norte. Um deles é a construção de seis hidrelétricas na bacia do rio Xingu. Elas formariam seis grandes lagos sobre a floresta amazônica, com uma superfície total de 18 mil km2. Uma área do tamanho do Estado de Sergipe. Juntas, as seis usinas produziriam 17,6 milhões de quilowatts. Essa energia representa uma vez e meia a produção da maior hidrelétrica brasileira, a de Itaipu, que produz 12,6 milhões de quilowatts, dos quais a metade é destinada ao Paraguai.

Para construir todas essas usinas, o Brasil se endividará em mais US$ 10,6 bilhões. É um orçamento inicial que corresponde a pouco menos de 10% do total da dívida externa. O orçamento de Itaipu era de US$ 3 bilhões; hoje, seu custo final já está calculado em US$ 25 bilhões. O custo estimado das usinas do Xingu não inclui as linhas de transmissão para levar essa energia aos centros consumidores. Os seis lagos vão inundar parte das reservas dos seis povos indígenas do rio Xingu: Arara, Asurini, Juruna, Kararaô, Parakanã, Xincrin e Xipaia-Curuaia. Pelas leis brasileiras, essas reservas são intocáveis. Não podem ser invadidas nem por posseiros, nem por garimpeiros e nem por águas de lagos artificiais, a menos que o governo obtenha autorização expressa do Congresso Nacional.

Não se pode saber se isso ocorrerá ou não. Mas basta lembrar que há muito tempo o Brasil vem se endividando para favorecer monopólios estrangeiros. Por exemplo: cerca de 50% da energia elétrica gerada por Tucuruí é vendida aos monopólios japoneses do alumínio, à Shell e à Alcoa. Segundo o ex-ministro das Minas e Energia, Aureliano Chaves, essa energia é gerada a um custo de US$ 38 o megawatt e vendida às transnacionais do alumínio por US$ 10,5 e US$ 16. "Praticamente fornecemos energia de graça", reconhece Paulo Richer, secretário do Ministério das Minas e Energia, que afirma que o subsídio dado aos três monopólios estrangeiros alcança US$ 1 bilhão ao ano, três vezes mais do que o governo federal gasta com a merenda escolar.

Consta dos objetivos estratégicos do Calha Norte a construção de um porto no Pacífico, um secular sonho heróico dos geopolíticos brasileiros. Uma rodovia partindo de Rio Branco, atravessando os Andes peruanos, deveria chegar ao grande oceano.

Por outro lado, os dois últimos pontos de aparente resistência à "opção continental" do Brasil foram neutralizados em março passado, quando Sarney realizou a primeira visita de um chefe de governo brasileiro ao Suriname e à Guiana. "Espero fechar o círculo da política de integração do Brasil com seus vizinhos da América do Sul", não escondeu Sarney do seu colega surinamês Ramsewack Shankar. Como não podia deixar de ser, o general Bayama Denys acompanhou o presidente, numa viagem que vinha sendo programada desde o começo dos anos 80.

A ação do Itamaraty

Logo depois que os Estados Unidos protagonizaram a estúpida intervenção militar na pequena ilha de Granada (parece que os 100 mil granadinos estavam pondo em perigo o maior império dá História ...), os coronéis que governam o Suriname foram acusados de ter sido ganhos para a causa do socialismo, representando um perigo para a civilização ocidental e cristã... Para "exorcizar" esse perigo, o governo brasileiro enviou a Paramaribo uma missão chefiada pelo general Danilo Venturini. Algumas semanas depois, o Suriname foi "reconquistado para a causa ocidental e cristã". Vale ressaltar que nesse ponto o Itamaraty revela-se mais competente que o Departamento de Estado americano.

Pois bem. O resultado concreto da visita de Sarney foi um convite, de parte do atual governo do Suriname, para que o Brasil participe de uma "aventura na selva" daquele país: ajudar a construir Kabaleko, um projeto orçado em cerca de US$ 1 bilhão. E o Carajás do Suriname, define o Itamaraty. Completo, o projeto terá uma central hidrelétrica de grande porte, uma ferrovia ligando a região ocidental do Suriname ao Atlântico, uma fábrica de alumínio e um complexo portuário. Além disso, uma empresa brasileira já está se responsabilizando pela instalação de um serviço telefônico de 25 mil terminais naquele país, além das comunicações por microondas. O Suriname, a exemplo do Paraguai, se candidata a ser outro "Porto Rico" do Brasil.

No caso da Guiana, as relações do Brasil com esse país chegaram a ficar ameaçadas quando o então presidente Forbes Burnham, num gesto soberano, autorizou que aviões cubanos utilizassem o aeroporto de Thimeri em sua rota para Angola. Era novembro de 1975 e o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), depois de muitos anos de luta, conseguia instalar em Luanda um governo popular e democrático que se achava ameaçado pela guerrilha financiada pela África do Sul. Também de forma soberana, o então presidente Agostinho Neto havia solicitado ajuda ao governo de Cuba, para expulsar os invasores. Os aviões cubanos não poderiam cruzar o Atlântico sem uma base para reabastecimento.

O medo de que os guianeses pudessem ser "contaminados" pelos cubanos fez com que o Exército brasileiro aquartelasse tropas na fronteira com a Guiana, instalando o pânico entre a população fronteiriça daquele país, que temia por uma invasão brasileira. Nessa época, a Guiaria nem sequer possuía Exército. O evidente exagero da medida acabou obrigando o então chanceler guianês Frederic Wills a comparecer a Brasília.

Hoje, a Guiana é governada por Hugh Desmond Hoyte. Deve ao Brasil US$ 15 milhões e está aguardando a liberação de um linha de crédito de US$ 10 milhões, para intensificar o seu intercâmbio comercial. Em troca, o governo brasileiro espera o "sinal verde" para utilizar o porto de Georgetown como sua saída para o Caribe.

Para compreender Plenamente o Projeto Calha Norte, é necessário fazer-se uma análise dos planos geopolíticos dos militares brasileiros, levando em conta que o mesmo é uma tentativa totalmente na contramão de ressuscitar o clima de "Brasil potência" dos anos 70, no auge do milagre econômico".

A moderna geopolítica no Brasil começa com o livro do capitão Mário Travassos, editado em 1935, intitulado Projeção Continental do Brasil. No nosso entender a geopolítica é uma pseudociência. Mas como foi criada por teóricos com grande influência, principalmente nos Estados Unidos e Europa Ocidental, ela é a teoria oficial do imperialismo. Portanto, é necessário que seja estudada para que possamos compreender a estratégia e as manobras táticas do imperialismo.

Essa "ciência" tem algumas peculiaridades que incluem o ocultismo, o fetichismo e as artes mágicas. Uma de suas manifestações é o triângulo. Qualquer livro de geopolítica está cheio de triângulos. Para o principal geopolítico brasileiro, o general Golbery do Couto e Silva, o fato de o Brasil ser um triângulo com o vértice voltado para o Sul tem muito a ver com o seu glorioso futuro (conforme relata em seu livro Geopolítica do Brasil, considerado a "bíblia" do assunto pelos militares brasileiros). Um outro exemplo: o "pioneiro" Mário Travassos dizia que o triângulo formado pelas cidades de Santa Cruz de la Sierra, Cochabamba e Sucre, na Bolívia, seria decisivo para o controle da América do Sul. Quem dominasse esse triângulo, dizia ele, dominaria todo o continente. Não há nenhuma base material para essa escolha, porém essa teoria fetichista foi levada a sério pelos militares brasileiros. No auge do "milagre", o Banco do Brasil chega a instalar agências em duas dessas cidades para consolidar a influência brasileira.

Enquanto os geopolíticos brasileiros se limitam a fazer triângulos em seu próprio território, embora estranha, essa prática é tolerável. É um amadorismo de quem não tem muitas tarefas a cumprir. O grave é que eles passaram a fazer triângulos em território alheio, em países vizinhos, projetando o Brasil além de suas fronteiras. O general Golbery diz textualmente: "O Brasil está magistralmente bem localizado para concretizar o destino tão incisivamente indicado na disposição das grandes massas continentais (os geopolíticos tratam de ler o futuro dos povos como uma cigana as linhas das mãos). Está tão bem situado que chegará enfim, a hora em que se projetará para além de seus fronteiras."

Da defesa ao ataque

A primeira etapa da estratégia geopolítica dos militares brasileiros é ocupar o território nacional. O que é absolutamente correto, ninguém pode contestar isso. Essa seria a primeira etapa do Calha Norte: ocupar um vazio geográfico. Mas o que tem que ser levado em conta é a forma como essa ocupação vem sendo feita, como as decisões são tomadas (sigilosamente) etc. Além disso, está o problema de que os militares, para consolidar essa ocupação, sonham avançar além da fronteira.

Golbery propõe a vivificação das fronteiras. O Projeto Calha Norte pretende criar, em volta dos postos avançados das instalações militares, aldeamentos e vilas de colonos. Isso lembra muito as chamadas "aldeias estratégicas" do Vietnã, criadas pelos americanos naquele país asiático. Com isso, a presença militar torna-se absorvente e dominante, o que significa a negação do sistema democrático.

Mas foi no Itamaraty que surgiu um técnico melhor credenciado que Golbery na questão das fronteiras vivas. Trata-se do ex-embaixador Teixeira Soares, ex-chefe da Divisão de Fronteiras do Ministério das Relações Exteriores. Em seu livro História da formação das fronteiras do Brasil, Teixeira Soares diz: "Meu livro foi escrito para demonstrar que a fronteira, hoje, não tem mais o conceito inteiramente linear de outros tempos. É diferente e dinâmica, porque avança e retrocede conforme as circunstâncias, sendo algo vivo que exerce pressão natural sobre a fronteira econômica e demograficamente mais fraca".

Ou seja, se de um lado existe um país com alta densidade demográfica e desenvolvimento econômico bastante acentuado e, do outro lado, uma população rarefeita e pobre, simplesmente a fronteira não existe. Ela vai sendo empurrada. Isso foi aplicado durante os anos da ditadura e continua na Nova República, porque a geopolítica não mudou em absoluto. Basta citar como exemplo o Paraguai, onde a fronteira recuou 100 km. Nessa faixa viveram cerca de 400 mil brasileiros (pequenos proprietários, bóias-frias e sem-terra) que foram empurrados para fora do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, tornando-se instrumentos conscientes dos planos expansionistas dos militares brasileiros. Essa estratégia de forçar a emigração é uma das causas da não concretização da reforma agrária. Ninguém abandona sua pátria se nela consegue terra e condições minimamente razoáveis de vida.

Crise muda as táticas

Em relação ao Projeto Calha Norte, as táticas de ocupação e a expansão da influência brasileira junto aos vizinhos do Norte tiveram de ser adequadas à nova situação surgida com a crise econômica dos anos 80. Estrategicamente, contudo, a bacia amazônica como um todo continua sendo o segundo grande objetivo geopolítico dos militares e do atual governo brasileiro.

Em primeiro lugar, é preciso caracterizar que, efetivamente, a Amazônia é a região mais rica do mundo. Carajás abriga as maiores reservas minerais do planeta. Segundo levantamento do Departamento Nacional de Pesquisas Minerais (DNPM), as fronteiras norte de Roraima e do Amapá guardam em seu subsolo imensas jazidas de ouro e de diamantes. Além disso, toda a Amazônia é rica em petróleo, gás natural, bauxita, cassiterita, manganês, ferro, caulim e outros recursos minerais. Na serra do Navio, no Amapá, por exemplo, existe uma reserva de manganês estimada em 15 milhões de toneladas. Desde 1971 essa reserva vem sendo explorada pela Bethlehen Steel Co. em associação com o grupo Azevedo Antunes, com incentivos da Sudam.

Um levantamento realizado recentemente pelo próprio governo dá conta de que 40% da região vêm sendo explorados por empresas estrangeiras, isso sem falar nos garimpos clandestinos, na extração sem nenhum critério de madeiras nobres, como o mogno, e no contrabando de aves e de peles de animais. Só para dar uma idéia do que essa devastação representa, uma árvore de mogno demora quatrocentos anos para tornar-se adulta e ter sua madeira resistente à penetração de qualquer tipo de bactéria. O mogno é utilizado nos painéis das naves e foguetes que os americanos mandam constantemente ao espaço.

Internacionalizar, uma velha idéia

A primeira tentativa de internacionalizar a Amazônia data de 1853. Mathew Fontain Mauri, então chefe dos serviços hidrográficos dos Estados Unidos, revelando impressionantes conhecimentos geopolíticos para a época, defendia, em um livro intitulado The Amazon River and Atlantic slopes of South America, a tese de que, por estar o Pará mais próximo de Nova York do que do Rio de Janeiro, e por serem os transportes para o Norte mais fáceis, dever-se-ia internacionalizar a navegação em toda a bacia.

Na verdade, ao longo de mais de um século a Amazônia vem sendo cobiçada pelos estrangeiros. No governo do marechal Gaspar Dutra, em 1948, houve uma tentativa patrocinada pela Unesco. Em uma reunião realizada em Iquitos (Equador) foi aprovada a criação do Instituto da Hiléia Amazônica, organismo multinacional constituído por dezessete países, cujo objetivo explícito era a investigação científica e a exploração dos recursos naturais da região. O plano consistia na alienação gradual da metade do território amazônico brasileiro e de partes consideráveis dos territórios dos outros países da bacia. O plano acabou sendo arquivado por causa de uma intensa campanha popular, por denúncias de parlamentares e pela firme oposição do Clube Militar, então controlado por oficiais nacionalistas.

Depois do golpe de 1964, um acordo estabelecido pelo atual senador Roberto Campos, na época ministro do Planejamento do marechal Castello Branco, com a Associação Nacional de Ciências de Washington ressuscitava o projeto de internacionalização. A Amazônia seria colocada sob controle de um organismo internacional dirigido por uma junta executiva com sede em Porto Rico. Seu conselho deliberativo seria instalado em Washington. Essa nova proposta fracassou porque o governador do Amazonas, Artur César Ferreira Reis, se negou a firmar o acordo, denunciando a tentativa de se levar o Brasil a leilão. Depois, veio a tentativa de formação dos "grandes lagos" de Herman Khan, diretor do Hudson Institute.

Paralelamente, a ocupação e penetração das transnacionais vem se dando com completa cumplicidade dos governos. Uma comissão parlamentar de inquérito da Câmara dos Deputados, cujo relator era um militar da antiga Arena, brigadeiro Haroldo Veloso, concluía, já em 1965, que "mais da metade do território brasileiro está separada do resto, rodeada por um cinturão de propriedades estrangeiras". Um exemplo marcante do conluio dos governos militares com os interesses estrangeiros foi o Projeto Jari. O americano Daniel Keith Ludwig, valendo-se de sua amizade com os generais Golbery e Ernesto Geisel, conseguiu formar um feudo de 32 mil km2, uma superfície equivalente à da Bélgica ou à da Holanda.

Depois de 64, aviões da Geographic Division of the United States Armv passaram a fotografar todas as áreas do território brasileiro, que por um motivo ou outro interessassem às autoridades e aos monopólios americanos, utilizando os mais modernos processos, entre eles, o cintilógrafo. Hoje, os satélites cumprem essa função e sem ruídos. Com isso, os Estados Unidos passaram a conhecer, melhor que os brasileiros, não só a superfície como todo o subsolo do Brasil.

Não resta nenhuma dúvida de que o Projeto Calha Norte é uma tentativa (mais modesta em razão da falência econômica do país) de concretizar alguns dos "sonhos heróicos" intentados na década de 70 (como a saída ao Pacífico e ao Caribe).

Enquanto se trata de restabelecer projetos expansionistas dos geopolíticos militares, se liquida de forma sistemática com a soberania nacional. Atuando como síndico dos bancos credores, o FMI monitora rigidamente a economia do país, levando-o a recessão e ao caos econômico-social. O ministro da Fazenda se mantém porque assim o exigiu, em sua última visita de inspeção, o presidente do Citibank, Mr. John Redd. Toda a economia do país está a serviço da dívida externa (dos US$ 19 bilhões de saldo da balança comercial conseguidos com tanto sacrifício no ano passado, US$ 17 bilhões foram destinados aos banqueiros internacionais). As empresas estatais trabalham com prejuízo para proporcionar energia, matérias-primas, fretes altamente subsidiados etc., às transnacionais e estão sob a ameaça de serem entregues ao capital alienígena.

O governo cria as zonas de processamento de exportação (ZPEs), onde o capital estrangeiro gozará de total extraterritorialidade. Com os incentivos fiscais concedidos por meio da Sudam, o governo proporciona recursos, inclusive a empresas internacionais, para instalar-se na Amazônia, destruir a seiva tropical a pretexto de uma exploração pastoril totalmente artificial. A custos faraônicos, o governo constrói ferrovias e rodovias para tornar ainda mais baratos os produtos brasileiros lançados no mercado internacional (como o caso do minério de ferro, cujo preço se mantém há mais de dez anos em US$ 15 a tonelada, como se o signo monetário americano fosse algo estável). Continuam em cogitação, inclusive, planos de alienação do território nacional, como o "Projeto JICA" (500 mil km2 nos Estados de Minas Gerais e Goiás, com a imigração de três milhões de japoneses).

Enquanto se liquida, de todas as maneiras, com a soberania do país, absurdamente se elaboram novos projetos expansionistas. Para tratar de entender essa loucura é necessário ler o livro de Golbery, especialmente sua teoria sobre o "satélite privilegiado" (os geopolíticos americanos falam de "keycountry"). O Brasil deve aceitar de forma incondicional a hegemonia dos Estados Unidos (e atualmente dos demais países imperialistas), mas deve associar-se à exploração imperialista sobre os demais países do subcontinente sul-americano. É a teoria do sócio menor e, simultaneamente, do gendarme mantenedor da ordem imperial.

Luzia Rodrigues é jornalista e membro do Conselho Consultivo da ABI-SP.

Paulo R. Schilling é jornalista, responsável pelo projeto da dívida externa do Cedi, membro do Conselho Editorial da Revista Tempo e Presença, integrante do Desep-CUT.