Política

Considerado o marxista mais original do Brasil, procurou primeiro conhecer o nosso país porque, para ele, importava descrever processos e ser fiel aos fatos

Num inquérito realizado por uma revista, Caio Prado Júnior apontou os livros que ele considerava indispensáveis para se iniciar no marxismo. Com exceção de Anton Menger (1841-1906), socialista de cátedra austríaco, todos os outros eram autores russos: Plekhanov, Bukharin, Lapidus, Ostrovitianov e Lenin.

Um ano antes ele havia visitado a União Soviética. Voltara entusiasmado. Dera palestras no Clube dos Artistas Modernos exaltando Stalin e a construção do socialismo. Por fim, até escreveu um livro: URSS, um Novo Mundo. Era natural que visse na Rússia o centro de difusão do pensamento  socialista. Sua crença naquela forma de socialismo e seu respeito pela produção teórica de um tipo de marxismo que, mais tarde, seria considerado escolástico, doutrinário e vulgar mantiveram-se mesmo depois da invasão da Hungria, do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (denúncia dos crimes de Stalin), da cisão entre China e União Soviética e da Invasão da Tchecoslováquia.

Como explicar que, ainda assim, ele tenha se tornado o marxista mais original do Brasil?

Caio Prado Júnior aderiu ao comunismo em 1931. Seu marxismo e sua compreensão do Brasil estiveram marcados pela primeira geração de militantes do Partido Comunista do Brasil (PCB). De alguma forma, os primeiros dirigentes do PCB tentaram, com escassos recursos intelectuais, “aplicar” o instrumental teórico marxista à nossa realidade. Astrojildo Pereira, Leôncio Basbaum e Otávio Brandão foram exemplos disso no PCB. E Mário Pedrosa e Lívio Xavier entre os trotskistas. Todos aceitavam o padrão de socialismo soviético, ainda que os últimos preferissem ver nele uma degeneração (que podia, porém, ser salva por uma revolução política contra a burocracia).

Essa primeira geração não deixou seguidores. Foi afastada de cargos de direção no partido no início dos anos 1930. Depois da chamada “intentona comunista” (1935) e da desarticulação do PCB durante o Estado Novo, surgirá um novo grupo dirigente sem nenhuma ligação com aquelas direções que se sucederam vertiginosamente dez ou quinze anos antes. Ora, Caio Prado Júnior foi militante ativo do PCB exatamente naqueles anos. Mais precisamente entre 1933, quando atuou no Clube dos Artistas Modernos e escreveu seu livro Evolução Política do Brasil (tentativa de interpretação materialista de nossa história), e o ano de 1947, quando foi eleito deputado à Assembléia Constituinte de São Paulo.

Foram anos cruciais. Ao contrário do que o próprio Caio Prado Júnior disse mais tarde, ele teve grande importância na estrutura do partido nos anos 30, embora isso se restringisse ao estado de São Paulo e se devesse não a cargos internos, e sim à participação na Aliança Nacional Libertadora (ANL). Afinal, ele não teria sido vice-presidente estadual dessa entidade sem a indicação de seu partido. Essa militância escandalizava sua família, ainda rica e dona de muitas fazendas, e, especialmente, a pequena sociedade de gente estabelecida na São Paulo dos anos 30. Sua prisão em 1935 deu-se quando Fábio Prado, seu  tio, era prefeito da cidade.

Na prisão ele teve suas regalias. Sua esposa mandava-lhe diariamente comida fresca e ele lia jornais.  Foi por isso acusado por outros militantes até de fracionismo (acusação grave nos meios esquerdistas da época). Escreveu diários políticos e produziu alguns textos em que antecipava algumas das geniais  intuições que se revelariam no seu livro Formação do Brasil Contemporâneo. No final de um de seus diários, deixou uma excelente análise da República Velha e do significado da Revolução de 1930. Pode-se notar que se afirmava aí sua vocação de historiador. E a História não era por acaso. Era a disciplina  orientadora dos grandes textos daqueles anos que tentavam redescobrir o Brasil. Solto em fins de 1937, partiu para a Europa e alugou um apartamento parisiense no Bois de Boulogne, com a mulher e os dois filhos. Retornou em 1939. Até 1942 dedicou-se a escrever Formação do Brasil Contemporâneo, sua principal obra. Bem recebido pela crítica, esse livro, ao lado de História Econômica do Brasil (1945),  deu-lhe grande prestígio intelectual.

Sem citações autorizadas de Marx ou de Stalin, como seria comum nas obras de outros comunistas e  mesmo nos seus estudos filosóficos dos anos 50, Caio Prado Júnior descobriu que as formas de produção aqui instaladas obedeciam a um único objetivo: servir aos mercados dos países europeus. Tudo o mais se subordinava a isso. Esse era o sentido da colonização de um país cuja história foi um capítulo da História do Comércio europeu.

Como ele partiu da análise da estrutura comercial, foi chamado de circulacionista (o que, no jargão marxista, significava que ele não dava atenção ao modo de produção, categoria explicativa chave de tudo). Caio Prado sabia que Marx fora coerente ao enfatizar os mecanismos de produção em O Capital, obra teórica e cuja ilustração histórica era o desenvolvimento britânico. Mas no caso do Brasil colonial  não era o estudo da produção, e sim o da esfera da distribuição que conduzia à totalidade. Isso porque o alfa e o ômega do processo global da produção capitalista estava no centro do sistema. É isso que explica a montagem de um aparelho produtivo na colônia.

Ao ver o Brasil como sempre capitalista e periférico, ele se separou da visão dominante de seu partido, a qual se cristalizou nos anos 50. Nessa época continuava no PCB, mas sem o ritmo de atividades que mantivera até 1947. Cuidava da Revista Brasiliense e de sua editora, de mesmo nome. Escrevia textos filosóficos, essenciais para conhecermos seu pensamento, mas estes não sobreviveram ao tempo. É importante notarmos que tais textos são formalizações a posteriori de um marxismo que ele  desenvolveu na prática de historiador, confrontando a compreensão dos mecanismos de funcionamento do capitalismo mundial com as formas singulares de sua manifestação nas áreas coloniais. Isso o diferenciou de outros marxistas. E aqui voltamos à pergunta inicial: de onde provém, portanto, sua originalidade?

Nos textos filosóficos que produziu nos anos 50 (Dialética do Conhecimento, 1952, e Notas Introdutórias à Lógica Dialética, 1959), há um diálogo maior com o pensamento filosófico mais atualizado da época, mas ainda assim ele mantinha em alta conta o marxismo soviético, que conhecia bem e cada vez mais. Todavia, quando escreveu seus livros de História nos anos 30 e 40, Caio Prado Júnior conhecia bem menos esse marxismo. Daí a idéia difundida de que ele tinha um baixo estoque de categorias marxistas. Também o acusavam de não usar conceitos marxistas explicitamente em sua obra, como o de modo de produção.

Não podemos saber exatamente qual era seu conhecimento de Marx em 1942, quando publicou  Formação do Brasil Contemporâneo. Sabemos que ele já havia lido O Capital numa edição francesa. O que importa, porém, é que com muito ou pouco conhecimento de Marx ele inverteu a operação  intelectual dos comunistas brasileiros que buscavam compreender um método para depois aplicá-lo ao Brasil. Ele procurou conhecer o Brasil em primeiro lugar e dialogar com as fontes históricas, sendo que muito de seu método deriva de sua prática de historiador. O próprio suposto circulacionismo que decorre diretamente da compreensão de que o Brasil nasceu inserido nos circuitos da economia mundial foi mais tarde “teorizado”. Assim como sua rejeição a categorias previamente definidoras de realidades.

Para Caio Prado Júnior, só havia processos e relações, o que para marxistas mais ortodoxos significava destituir os objetos de toda a sua estatura ontológica. A tradução historiográfica desse relacionismo na filosofia era seu circulacionismo na história econômica, sem a ênfase devida nas forças produtivas ou sem o uso de categorias como formação social, modo de produção etc. Não vemos em sua obra frases definidoras do tipo: “No Brasil vigorava o modo de produção...”

É por isso que em seu livro A Revolução Brasileira (1966) Caio Prado Júnior questionou a  reocupação com o que as coisas são, ou seja, com a necessidade de classificá-las, e pretendeu descrever o que acontece. Descrever processos e ser fiel aos fatos era o que lhe importava. E também por isso ele não definiu a revolução brasileira, não estabeleceu suas leis ou formas a priori.

O Brasil contemporâneo

Depois de escrever seus principais livros, Caio Prado Júnior mergulhou na militância política aberta, permitida pelo novo clima que o país vivia no final da Segunda Guerra Mundial. Luís Carlos Prestes saía da prisão e o PCB estava às vésperas da legalidade. Desde 1942, Caio Prado estava inserido na reorganização do PCB. O partido, desarticulado pelas prisões, tinha praticamente desaparecido como organização. Foi em São Paulo que vários intelectuais e militantes iniciaram a formação dos comitês de ação para lutar por medidas econômicas e políticas imediatas em favor da população e contra a ditadura. Com essa nova experiência de frente ampla a partir da base, muitos comunistas tentaram reorganizar o partido.

No Rio de Janeiro surgiu na chamada Conferência da Mantiqueira a Comissão Nacional de Organização Provisória (CNOP) do partido, que tinha orientação completamente distinta. Ungida por Prestes como a verdadeira direção do PCB, a CNOP provocou a saída de muitos comunistas paulistas. Mas Caio Prado Júnior, embora fosse contrário à política de aproximação do PCB com Vargas, permaneceu. Isso mostra o quanto ele era um homem de partido. Por várias vezes se viu próximo da ruptura, mas sempre recuou.
Para um militante de sua geração era inconcebível um comunista sem partido. Ser comunista era uma escolha de vida. De toda a vida. Mas não era verdade que Caio Prado Júnior fosse uma vítima do PCB. Ao contrário. Mesmo com divergências, foi escolhido candidato a deputado federal − não foi eleito. Em seguida, a deputado estadual, e foi eleito em 1947, com 5.257 votos. Sua participação foi decisiva para a conformação de uma leitura negativa da política brasileira. Como marxista, ele via a política de forma   ambígua: um pouco como o reflexo de realidades subjacentes e um pouco como o fermento propulsor de mudanças sociais. Mas, no caso brasileiro, pareceu-lhe fundamentalmente uma atividade rasteira, sem objetivos de longo prazo e sem definição de interesses de classes. Os políticos agiam muito mais como representantes de si mesmos ou, quando muito, de interesses corporativos.

Entendia que havia uma relação proporcional entre a miséria moral e cultural da população brasileira e o baixo nível político das classes dominantes. Tal situação era ruim a ambas as classes. Nesse sentido, ele se filia a uma tradição de contestação intelectual que remonta a José Bonifácio, o qual via na degradação do escravo a degradação do próprio senhor, e passa por Manoel Bonfim e outros que escolheram a defesa das “classes desprotegidas”, como acentuaria Dante Moreira Leite.

Como Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, ele questionava a qualidade do nosso liberalismo político sempre preso ao formalismo jurídico, mas não a realidades práticas. Os liberais brasileiros, tendo a cultura como ornamento e as instituições como adorno de atos inconfessáveis, foram seres vocacionados para o discurso empolado, a retórica vazia e a manutenção de privilégios.

Isso nos leva a um problema de fundo. Diante de um liberalismo rebaixado, também o proletariado não forjou um socialismo ou um comunismo de grande capacidade crítica. Apesar de reconhecer nos comunistas brasileiros um grande valor moral, Caio Prado Júnior os via como produtos da mesma pobreza intelectual que contaminava todas as classes sociais. Num país colonial, os comunistas, como os liberais e conservadores, mimetizavam fórmulas européias sem atenção para a especificidade de nossa realidade concreta. Tanto assim que alguns liberais mais autênticos acompanharam os socialistas mais críticos e ingressaram em movimentos nacionalistas ou de esquerda, em geral desprovidos de grandes bases sociais, como a Esquerda Democrática e o velho Partido Socialista.

Os últimos anos

Caio Prado Júnior voltou a ser bastante perseguido depois de 1947 (ano de sua passagem na Assembléia Constituinte paulista). E em 1971 foi condenado à prisão pela ditadura militar. Nos anos seguintes, continuaria vendo o Brasil como um país colonial e a burguesia brasileira como classe igualmente  colonizada. Deixou, entretanto, de ser um intelectual isolado. Não obteve um lugar na USP por razões políticas (embora tivesse tentado duas vezes), não foi aceito pelo PCB em nenhum cargo de direção e, nas raras vezes em que suas idéias foram debatidas, foi severamente criticado nas publicações  partidárias. Ainda assim, tornou-se um clássico em vida, sendo elogiado em teses acadêmicas e convidado a participar de bancas na Faculdade de Filosofia, embora não na Faculdade de Direito. E mesmo no PCB era citado como grande intelectual, mas ao custo do silêncio sobre suas idéias mais polêmicas. Silêncio que só se rompeu em 1966, quando seu livro A Revolução Brasileira lhe rendeu o título de intelectual do ano. Livro fundamentalmente de crítica ao PCB.

Nos anos 70 afastou-se completamente da atividade militante. Em 1983 veio a público para apoiar o primeiro comício da campanha pelas eleições diretas, convocado pelo Partido dos Trabalhadores. No entanto, olhava com desconfiança Lula e o PT e manteve-se vinculado à defesa do chamado socialismo real e do movimento comunista. Na universidade sua obra passou a ser questionada por não ter dado a  devida ênfase à acumulação interna de capital na colônia ou mesmo pelo fato de lhe ter passado despercebido o processo de industrialização e formação de um mercado interno entre 1930 e 1980.

Caio Prado Júnior via o país sempre mercantil e dependente. Também foi questionada sua leitura da questão agrária, pois ele teria considerado a luta pela posse da terra uma tarefa menor e pouco significativa, preferindo o apoio ao sindicalismo dos trabalhadores de grandes empresas rurais. Nesse caso ele teria sido desmentido pelo surgimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST).

Todas essas críticas continham exageros e equívocos, afinal Caio Prado Júnior nunca foi contra o parcelamento da propriedade e a distribuição de terra nem negou a possibilidade de acumulação endógena na colônia, embora esta fosse subsumida ao sentido da colonização e à missão precípua do Brasil: servir de arrimo à acumulação de capitais na Europa e, depois, nos Estados Unidos.

Caio Prado Júnior cometeu erros formidáveis. Ele avaliou incorretamente a conjuntura do fim do Estado Novo, desprezou a capacidade de industrialização do Brasil e mesmo o papel da classe dominante paulista cafeicultora e industrial da República Velha (que conheceu de perto e por dentro). Mas, no sentido geral de sua obra, acertou: somos um país sempre periférico, capaz de acompanhar os ritmos da civilização capitalista em muitas áreas, mas ainda incapaz de mudar a forma subalterna de nossa inserção no mundo globalizado.

Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP e membro do Núcleo de Estudos d’O Capital – PT-SP