Política

Um dos grandes desafios do PT é levar para as administrações locais o projeto de transformação nacional impulsionado, desde 2003, por suas gestões federais

A negação histórica da existência de um povo palestino, necessária para afirmar o status da terra como res nullius, como uma terra sem povo destinada ao povo a que fora prometida, mantém-se constante até hoje e é acompanhada da vilificação daqueles que estão “do outro lado”, daqueles menos civilizados, dos radicais, dos amantes da morte

Participação dos petistas é fundamental para consolidar processo

Participação dos petistas é fundamental para consolidar o atual processo de conquista de autonomia do Estado. Foto: Antonio Cruz/ABr

O cidadão atento ao cenário econômico, político e social brasileiro recente constata que, desde Lula até hoje, com Dilma, o país está mudando bastante e vê isso com entusiasmo, como mostram as pesquisas de avaliação da ação governamental. Em outubro, haverá eleições municipais, e um dos grandes desafios é levar para as administrações locais o projeto de transformação nacional impulsionado, desde 2003, pelas administrações federais encabeçadas pelo PT. No intento de contribuir para uma visão geral do quadro em que as transformações têm ocorrido, é fundamental visualizar o novo papel do Estado brasileiro, ator-chave nesse processo de mudança histórica.

Do Estado nacional-desenvolvimentista ao Estado neoliberal

O Estado pode ser visto em várias dimensões. Destacarei três delas: a sociopolítica, a político-institucional e a das capacidades do aparato estatal e da burocracia pública. Em termos sociopolíticos, o Estado expressa um pacto de dominação. A grande pergunta relacionada à dimensão sociopolítica do Estado é quais são as forças componentes do pacto de dominação que ele, simultaneamente, expressa e nele participa enquanto ator corporativo. Do ponto de vista político-institucional, importa saber qual é o regime político do Estado: autoritarismo, totalitarismo, democracia, qual democracia? E, em termos das capacidades do Estado, que é também uma dimensão institucional, mas de seu aparelho, colocam-se as questões: que burocracia pública o Estado possui? Quais são seus recursos fiscais, financeiros, organizacionais, humanos, de informação, análise, conhecimento, expertise, iniciativa, entre outros, para a formulação e implementação de políticas públicas?

O velho Estado desenvolvimentista sustentava-se em um pacto de dominação que, grosso modo, era constituído pela elite empresarial das estatais e pelo grande capital internacional e nacional. Após uma longa crise aberta no início dos anos 1980, que fez ruir, entre outros, o pacto de dominação nacional-desenvolvimentista, a reconstrução das bases sociopolíticas do Estado brasileiro ocorreu no processo do Plano Real. Aquela estabilização monetária foi formulada e executada como carro-chefe das chamadas reformas estruturais neoliberais, como a desregulamentação financeira, as privatizações, as reformas administrativa e fiscal, a abertura comercial, a flexibilização das relações de trabalho etc. Esse conjunto de mudanças orientava-se para a financeirização da economia, perspectiva hegemônica dirigida pelos rentistas e pelas instituições financeiras (bancos, investidores institucionais, corretoras, distribuidoras etc.). Tais reformas ocorreram, de forma concentrada, dos anos 1990 até 2002, mas algumas também após 2003. O conjunto de mudanças neoliberais propiciou, além da eleição e reeleição de Fernando Henrique Cardoso, a construção do pacto de dominação neoliberal.

Desde o final dos anos 1990, a crise do neoliberalismo e de suas políticas antipopulares induz à emergência de uma onda antineoliberal em vários países da América Latina. O eleitorado da Venezuela elege Hugo Chávez em 1998. Em 2002 Lula é eleito no Brasil. Assim que toma posse, em 2003, o grande líder petista, embora tenha herdado a resiliência neoliberal, já mostra que representa um projeto diferente de Estado e de políticas públicas: institui o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), reunindo representantes empresariais, de trabalhadores, de movimentos sociais e outras associações da sociedade civil. Tal iniciativa visava, conforme estabelecido em seu regimento interno, a concertação entre os diversos setores da sociedade nele representados, para propor políticas e diretrizes específicas, voltadas ao desenvolvimento econômico e social. Recém-criado, o CDES aprovou a sugestão da ampliação do Conselho Monetário Nacional, sinalizando um anseio representativo de mudança na política econômica da financeirização.

Novo pacto de dominação e nova democracia

Os governos Lula (2003-2010) implementaram reformas gradualistas, em relação aos anos FHC (1995-2002). As novas ações do Estado implicaram a redução da taxa média da Selic, o aumento da média de crescimento do PIB, a redução do endividamento público, a liquidação da dívida com o FMI (o país, inclusive, passou de tomador a emprestador dessa organização multilateral), no alcance pelo Brasil do status de grau de investimento, pelas agências internacionais de classificação de risco, no aumento do crédito bancário, na orientação creditícia anticíclica agressiva dos bancos públicos federais (BNDES, BB e CEF), desde o final de 2008, para o enfrentamento dos efeitos da crise financeira internacional aqui etc.

Empossada em 2011, Dilma dá continuidade às transformações na ordem econômica. Substitui Meirelles, na presidência do Banco Central (BCB), por Alexandre Tombini, funcionário de carreira da instituição. Em agosto, o Comitê de Política Monetária (Copom) do BCB inicia um processo efetivo de redução da taxa básica de juros. Em julho de 2011, a Selic estava em 12,5% ao ano. Em julho de 2012, atinge o nível mais baixo de sua história, 8%. Para promover essa trajetória impactante de mudança na política monetária, em maio de 2012 a área econômica do governo muda as regras de cálculo dos rendimentos da caderneta de poupança, mas o faz sem provocar nenhum alarde, nenhum ataque substantivo da grande mídia e, sobretudo, sem que isso levasse os depositantes a retirar dinheiro dessa renda fixa popular, ao contrário, a poupança continua sólida. Hoje, definitivamente, o BCB e a política monetária não são mais apartados, respectivamente, do governo e das demais áreas de política macroeconômica. O BCB é um órgão de governo, atua em conjunto com os Ministérios da Fazenda e do Planejamento e com a Presidência da República. A política monetária não detém mais a primazia da política macroeconômica. As políticas monetária, fiscal e cambial estão articuladas para servir ao novo desenvolvimento, que não é apenas sinônimo de crescimento, mas tem uma concepção muito mais ampla, envolvendo justiça social, respeito ao ambiente e inclusão política, novos direitos e mais democracia. Avança-se no sentido de a democracia não ser meramente um regime político, mas uma prática de construção de uma cultura e sociedade democráticas. Em nível federal, representação e participação estabelecem uma inédita relação sinérgica.

Os governos encabeçados pelo PT estão reconstruindo o Estado enquanto pacto de dominação, enquanto regime e enquanto aparelho burocrático. Junto com a desconstrução do pacto de dominação neoliberal, está sendo articulado politicamente, do Estado à sociedade, e vice-versa, um pacto de dominação democrático-social-neodesenvolvimentista, por assim dizer. O prefixo neo deve-se ao fato de que o contexto é de globalização, e não mais de economia fechada. Mas o Brasil se insere no mundo em novas bases, sendo respeitado internacionalmente, deixando de ser visto apenas como terra do futebol e do carnaval. O Brasil é tido como um exemplo em matéria de combate à pobreza, como um país que navega em uma espécie de boom econômico, com um PIB que o coloca na posição de sexta economia do mundo (em 2002, ocupava a 12ª), com presidentes da República que batem recordes de popularidade, um país do G-20, cuja voz é ouvida com respeito nas organizações multilaterais, enquanto vários países do Primeiro Mundo, sobretudo na zona do euro, enfrentam, com políticas neoliberais, recessão, pesada dívida pública e desemprego.

O novo pacto de dominação não é socialista, mas, nas palavras de Juarez Guimarães em artigo recente nesta Teoria e Debate (link), impõe derrotas ao neoliberalismo e, avalio, tem corte social-democrático. Embora o PT seja um partido socialista, a relação sociopolítica de forças ainda não permite a realização das transformações socialistas, mas o sentido das mudanças é altamente progressista e, cabe mencionar, nenhum governo em sociedades capitalistas, até hoje, fez mais do que fizeram os governos social-democráticos. Colocar a economia e a sociedade brasileiras em um trilho civilizado de transformação já é um desafio altamente importante para os trabalhadores e as maiorias sociais historicamente excluídas dos benefícios da ordem econômica e social. Ademais, tornar o Estado realmente uma república é também outra revolução dentro da ordem extremamente progressista na qual os governos liderados pelo PT estão empenhados e devem empenhar-se. O efetivo compromisso do Estado brasileiro, desde Lula, com a dívida social e com a cidadania significa uma virada histórica de página em relação ao que até então a ordem pública havia feito ou, sobretudo, deixado de fazer.

Tais transformações só têm sido possíveis porque o novo Estado estabelece relações democráticas e de compromisso político qualitativamente diferentes com a sociedade civil, com os interesses organizados e com os pobres. O novo Estado em construção é muito mais enraizado na sociedade civil como um todo, mais representativo do conjunto dos anseios da Nação, ou seja, é um Estado mais nacional por ser mais democrático. É um Estado que conquista espaços de autonomia política, que negocia, de modo tripartite, com capital e trabalho, que articula as relações de força no sentido de promover maior equilíbrio entre as classes e frações. Enquanto o pacto de dominação neoliberal implicou um nível alto de captura do Estado pela coalizão dos rentistas com as finanças, o novo pacto social-democrático-desenvolvimentista desloca a hegemonia da financeirização e constrói um modelo de desenvolvimento com inclusão social e distribuição de renda.

Embora ainda tenha muito que avançar, esse modelo já tem dado resultados substantivos em termos de crescimento econômico e de respaldo à produção, à grande indústria nacional, mas também às micro, pequenas e médias empresas, em termos de inovação, de treinamento de mão de obra, técnicas de gestão, crédito, microcrédito, vários tipos de incentivos etc. As propriedades produtivas do meio rural têm sido igualmente assistidas com uma série de políticas. Há resultados visíveis também em termos de dinamismo social e econômico nos municípios pequenos e médios, de presença maior do Estado no atendimento das necessidades básicas do cidadão, como luz, medicamentos, respaldo à agricultura familiar, acesso a moradia, urbanização de favelas, equipamentos públicos sociais, inclusão no ensino superior, capacitação da burocracia pública, expansão das contratações nas universidades federais, na Polícia Federal, nos bancos públicos federais etc.

Desafios do pensamento e da ação políticas

O clássico pensador político Alexis de Tocqueville, na primeira metade do século 19, abordou aquilo que ele considerava ser a revolução democrática. “Uma grande revolução democrática está ocorrendo em nosso meio”, escreveu ele em A Democracia na América. Para ele, a democracia é um processo democrático que acompanha as sociedades humanas há muitos séculos e ocorre de modo específico em cada uma delas. O principal conteúdo desse processo histórico-democrático milenar é a igualdade de condições. O processo democrático é um processo igualitário, uma lei de nivelamento que destrói as sociedades aristocráticas, fazendo, na Revolução Francesa, por exemplo, o nobre descer e o plebeu subir. Mas a interpretação tocquevilliana e liberal da revolução democrática não esgota, nem outrora, nem atualmente, nem lá e cá, a compreensão das transformações que classes e frações em luta podem implementar, em contextos democráticos e históricos específicos, nas sociedades modernas. Compreender as mudanças em curso no Brasil é um desafio do pensamento político brasileiro, sobretudo para as esquerdas.

A reconstrução do Estado brasileiro nas três dimensões distinguidas acima apoia-se em uma revolução democrática e a alimenta. Nela, o próprio Estado, como ator corporativo, tem jogado um papel político fundamental. Conforme a grande mídia divulgou, o desenho geométrico da estrutura social brasileira, até 2005, tinha o formato de pirâmide, com metade da população – quase 93 milhões de pessoas – situada na base (classes D e E). Em 2010, o formato do desenho mudou para losango, pelo fato de a classe C ter tido um acréscimo de quase 40 milhões de novos membros.

Márcio Pochmann considera que esses estratos sociais da classe C, na verdade, situam-se nas classes trabalhadoras. Ao mesmo tempo, ele avalia que tais indivíduos caracterizam-se, ideologicamente, pelo consumismo, pelo individualismo e pela despolitização. Essas mudanças sociais e ideológicas não foram inventadas aqui no Brasil. Os problemas políticos que elas acarretam têm colocado desafios para as esquerdas na Europa há muito tempo. André Singer, analisando o lulismo, narra algumas das novas questões em jogo com as transformações sociais no proletariado e no subproletariado.

Poderíamos nos perguntar: como avançar em termos de aquisição de consciência de classe, como fazer a ponte para a transformação socialista? Não me proponho a enfrentar essa questão aqui. Levantei-a para explicitar que o processo igualitário em curso é rico e complexo. Se o socialismo não está na ordem do dia, há ainda muitas conquistas importantes para realizar nos trilhos da revolução democrática.

Estamos em plena campanha eleitoral. Hoje o governo federal está muito mais presente nos municípios, com um amplo leque de programas destinados às cidades, nas seguintes áreas: cultura, desenvolvimento econômico, desenvolvimento rural e agronegócios, desenvolvimento social, desenvolvimento urbano, desporto e lazer, direitos e cidadania, educação, energia, gestão pública, meio ambiente, previdência social, saúde, segurança pública, tecnologia da informação e inclusão digital, trabalho e renda, transporte e turismo.

O novo modelo de desenvolvimento em construção pelos governos federais liderados pelo PT precisa penetrar mais nos municípios. O fortalecimento da democracia e das capacidades do Estado no âmbito do poder local é uma meta a ser cumprida para o avanço da revolução dentro da ordem em curso no país. Há muito neopatrimonialismo a ser combatido, muito descompromisso com a cidadania e com os trabalhadores e excluídos. Se, formalmente, somos um Estado de Direito e uma república, a privatização da coisa pública ainda é um fato e o combate a ela passa pelo fortalecimento do pacto de dominação democrático-social-desenvolvimentista.

A participação consciente e organizada dos petistas e seus aliados nessas eleições municipais, tanto para conquistar postos executivos e nas câmaras de vereadores como para fortalecer esse amplo projeto de transformação do país, que não se resume a disputas eleitorais, é fundamental para impulsionar e consolidar o atual processo político de conquista de autonomia do Estado, de maior equilíbrio de forças e de construção de um pacto de dominação social-democrático-desenvolvimentista contra a financeirização neoliberal e a favor da Nação. Sem dúvida, cabe frisar, para concluir, que se trata de um desenvolvimento sustentável, para que os benefícios da ordem econômica e social sejam garantidos às gerações presentes e futuras.

Marcus Ianoni é professor do Departamento de Ciência Política da UFF