Nacional

Aldo Lins e Silva relata episódios importantes da história recente do país, nos quais quase sempre esteve presente.

Na clandestinidade ou na legalidade, contou com a confiança da direção do Partido Comunista, particularmente de seus amigos Luiz Carlos Prestes e Carlos Marighella. Por acaso, no dia do golpe de 64 estava com Miguel Arraes, quando este recebeu voz de prisão. Hoje, nosso entrevistado faz questão de ter registrado em seu cartão de visita: "advogado - militante do PT".

Como foi sua formação intelectual?
Fui dotado no curso da vida por dupla sobrevivência. A primeira, quando nasci, em Recife, nos meados de 1919, sob o signo da primeira guerra mundial, quando ao seu término grassava no mundo todo a temida gripe espanhola, que dizimou muita gente. Era recém-nascido, mas sobrevivi graças aos cuidados de meu pai, um médico de grande experiência, e da proteção de minha mãe, uma senhora de engenho banguê muito destemida. Era o caçula de uma família de dez filhos.

O conceito profissional de meu pai, Augusto Lins e Silva, levou-o ao magistério de Medicina e de Direito do Recife, como docente da cadeira de medicina legal. Sem nenhuma vocação para a política, foi deputado, membro da Academia Pernambucana de Letras, da Academia Nacional de Medicina e do Instituto Geográfico e Arqueológico de Pernambuco. Seu último posto no magistério foi no Rio de Janeiro, lecionando sociologia no Colégio Universitário da Universidade do Brasil, no qual eu viria a estudar no prelúdio do meu ingresso na Faculdade Nacional de Direito, na qual me diplomei em 1943.

A minha infância e parte da juventude sempre foi entre pessoas ligadas ao estudo e à inteligência de um modo geral. Porém, quando mudei-me para o Rio de Janeiro, nos idos de 1936, o meu destino era a Escola Militar do Realengo, da qual sem sombra de dúvida teria sido expulso. Lembro-me que no curso preparatório para a Escola Militar escrevi um trabalho sobre a Proclamação da República e desanquei o pau no marechal Deodoro da Fonseca, escrevendo que desse episódio a única coisa que subsistia na história era a imagem fantasiosa do marechal Deodoro, lançando um brado que nunca deu e erguendo uma espada que não desembainhou. O professor do curso - um coronel reformado, mas de idéias progressistas - aconselhou-me a desistir da carreira militar, o que fiz em tempo.

O senhor conheceu muita gente famosa nessa época no Rio?
A figura mais famosa que conheci por essa época foi o jurisconsulto Clóvis Bevilácqua, que se não me falha a memória, ainda era consultor jurídico do Itamarati. Bevilácqua tinha sido professor da Faculdade de Direito do Recife, um jurista laureado, autor do Código Civil Brasileiro. Era uma pessoa muito singela, o que contrastava com o vulto da sua personalidade. Ainda muito jovem, conheci Carlos Lacerda, J. G. de Araújo Jorge. Chagas Freitas e seus pais eram amigos de meu primo Evandro e de meu irmão médico Mauro Lins e Silva. Ouvia falar muito nas histórias e no talento dos professores Leônidas de Rezende e Castro Rebelo, marxistas de grande expressão intelectual. As minhas inclinações políticas nasceram, certamente, desse convívio. Tinha havido a malograda revolução comunista de 1935, mas que não fora totalmente desarticulada. Prestes e sua companheira Olga Benário estavam foragidos no Rio, porém articulados com os revolucionários e seus simpatizantes. Havia, ainda, a expectativa de deflagração armada do movimento revolucionário. Meu irmão Mauro e eu morávamos ao lado da Companhia Telefônica no Flamengo. Nossos aposentos serviram, então, de quartel general do grupo de revolucionários, à frente Carlos Lacerda, que na época era comunista, encarregado de invadir e tomar a companhia telefônica. O meu papel era o de vigiar a rua e comprar sanduíches e água para os revolucionários. A madrugada foi chegando, o dia amanhecendo e o grupo se dissolveu, para minha decepção.

O senhor não voltou mais ao Recife?
Sim, na campanha eleitoral em 1937, os candidatos eram o escritor e político nordestino José Américo de Almeida, apoiado pela intelectualidade com solução social e brasileira para os problemas do país, e o paulista Armando de Sales Oliveira, candidato da oligarquia que perdera o poder em 1930 e tentara reconquistá-lo em 1932, com o movimento reacionário chamado "constitucionalista". Foi nessa época que me engajei na militância política, por intermédio da União Democrática Estudantil (UDE), embrião da União Nacional de Estudantes (UNE), que seria fundada durante a 2ª Guerra Mundial e da qual fui secretário de Assistência Jurídica, junto com o meu colega de Faculdade, militante do Partidão, Márcio Rolemberg Leite. Ambos fomos convocados para a guerra, no instante em que se formava a Força Expedicionária Brasileira (FEB).

A UNE teve um grande papel para a formação da FEB e a mobilização do povo brasileiro. Foi sob o signo da 2ª Guerra e convocado para o serviço militar que me formei em 1943 e ganhei a segunda sobrevivência ao escapar do exército expedicionário. Espero agora, na idade provecta, sobreviver ao governo do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, de quem fui amigo e admirador.

Ao tempo da UDE, no prelúdio da ditadura estadonovista de 1937, fui detido pela Polícia Política de Pernambuco. Era a época do fascismo caboclo, do chamado integralismo contra o qual o movimento estudantil se defrontava. Fui detido na própria sede da UDE, em Recife, que foi fechada por ordem do general Newton Cavalcanti, comandante da região militar e designado como executor do Estado de Guerra decretado pelo governo na repressão aos comunistas. Meu pai, então deputado, conseguiu negociar a minha liberdade na condição de me retirar da cidade imediatamente.

Fiquei asilado por algum tempo no interior do Rio Grande do Norte, na cidade de Nova Cruz, onde um irmão exercia uma função importante do Ministério da Fazenda. Acalmado o ambiente, meu pai trouxe-me de volta ao Rio de Janeiro. Nesse tempo eu ainda era o que então se chamava "inocente útil", a serviço dos comunistas.

Além da assistência jurídica aos estudantes, de que mais o senhor participava?
Paschoal Carlos Magno dirigia o Teatro de Estudantes do Brasil. Eu participava do departamento cultural da Casa Estudantil e era o único estudante que fazia parte da direção da fundação. Fui a pessoa escolhida para fazer viagens, receber as delegações que vinham do exterior. Quando o Paschoal, que era diplomata, foi designado para Liverpool, assumiu a direção do teatro uma professora de Niterói, Maria Jacinta, fui ajudá-la e representei uma série de papéis. Por exemplo, um dramalhão de José de Alencar, O Jesuíta. Nesse tempo, o teatro tinha tanto prestígio que levava suas peças para o Teatro Municipal. Era um grande acontecimento. Elas eram vistas por embaixadores, ministros de Estado e pelo próprio presidente da República.

Após esse período, em fins de 44 ou princípios de 45, vim para São Paulo, onde me instalei como advogado. Era também procurador de uma autarquia federal. E fazia minha política ligado ao Partido Comunista.

No que consistia essa sua ligação com o PC?
Eu tinha contatos com o partido e dava minha contribuição financeira. Tinha determinadas obrigações. Não pertencia a nenhuma base, era diretamente ligado ao Comitê Central.

Em São Paulo, dei prosseguimento a esse tipo de ligação, quando houve o racha. Foi depois do XX Congresso do PCUS, em 1956, quando surgiram as denúncias do stalinismo feitas por Krustchev. Então, fui procurado pelo Agildo Barata Ribeiro, que tinha sido o chefe militar da revolução de 35 e comandava toda a estrutura interna do partido, inclusive as finanças. Ele explicou aquela cisão e eu respondi: "essas brigas internas não me interessam, me interessa a organização partidária, continuarei com o partido. Se vai ser o senhor o elemento de ligação comigo, eu não sei, porque a minha atitude é de fidelidade ao partido; não pertenço a grupo nenhum". Pouco tempo depois apareceu o Carlos Marighella, que me deu uma versão - na qual acreditei - bem diferente da versão do Agildo. Marighella e eu nos comunicávamos sempre. Eu tinha um apartamento no centro de São Paulo, que emprestava às pessoas amigas. Morava na rua Martins Fontes e esse apartamento ficava na rua Álvaro de Carvalho, onde algum tempo depois se hospedou por uns dias o Mário Soares, que tinha saído clandestinamente de Portugal, no período salazarista. O Marighella tinha até a chave desse apartamento. Nossa amizade se consolidou, havia muito respeito entre nós, muita confiança.

Além dessa proximidade com Marighella de que forma o senhor ajudava o partido?
Em 1954, realizou-se uma conferência de juristas, convocada pela Associação Internacional de Juristas Democratas, cuja sede era em Bruxelas. Fui convidado por indicação de Marighella para participar da delegação. Esse congresso foi em Viena e seu tema era a defesa das liberdades democráticas. Nessa ocasião, pela primeira vez fui à União Soviética.

Depois em 1956, em Bruxelas, houve um outro congresso também convocado pela Associação Internacional de Juristas Democratas. Aí fomos convidados a visitar a China. Naturalmente tínhamos que passar por Moscou, onde passamos três ou quatro dias rumo a Pequim. Devido à Guerra Fria, essas viagens eram muito complicadas. Tanto que saímos de Amsterdã, porque os chineses lá tinham um escritório comercial, onde nossos passaportes foram legalizados para podermos ingressar na União Soviética e na China. Passamos mais de 20 dias na China. Fomos recebidos por Mao Tse-Tung e Chou En-Lai, cada um em um dia e no seu gabinete. Foi uma visita muito proveitosa. Os chineses eram carentes de tudo, inclusive de pessoal para a universidade. Em um jantar oferecido pelo ministro da Educação, este me convidou formalmente para ser professor na Universidade de Pequim, onde poderia lecionar história da América do Sul. Cheguei a visitar a universidade, ponderei bastante e recusei porque minha situação aqui era muito boa financeiramente e eu ainda era muito jovem. Além do escritório de advocacia, era procurador federal e também advogava para um banco de crédito cooperativo. A China para mim seria uma aventura.

Quando o senhor regressou, sua militância no PCB já era conhecida?
Em 1962, os dois astronautas soviéticos que tinham ido ao espaço visitaram diversos países e vieram ao Brasil. E aí o embaixador se serviu do meu escritório como se fosse a embaixada soviética. Colocou placa na porta e deu expediente recebendo os soviéticos que moravam aqui. Depois que ele foi embora, ficou o cônsul e eu passei muitos meses recebendo correspondência porque havia saído um anúncio no Estado de S. Paulo, comunicando onde estava instalado o gabinete do embaixador.

É verdade que o senhor estava junto com o Arraes no dia do golpe?
Em 1964, quando aconteceu o golpe, por coincidência eu tinha ido para Recife, ao enterro de minha mãe. Já no aeroporto senti um ambiente muito estranho. À noite, depois do enterro, liguei o rádio. Então, ouvi, pela Voz da América, a notícia da movimentação das tropas do general Mourão em Minas Gerais. Fiquei espantado e liguei para o prefeito de Recife, Pelópidas da Silveira, que era meu amigo de infância. Ele não sabia de nada e disse que ia telefonar ao governador. As tropas já estavam em movimento, o prefeito de Recife não sabia de nada e nem o governador! No dia seguinte, o prefeito me apanhou em casa e fui, com meu irmão Mauro, para o palácio, às 7 horas da manhã. E lá estava toda a tropa defendendo a legalidade ainda. Vi o general Justino Alves Bastos, com o qual conversei nos salões do palácio. E essa gente entrava e saía do gabinete do governador. Estava lá também o Gregório Bezerra, que queria oferecer resistência e disse que tinha elementos para isso.

Eu assisti ao golpe e à prisão de Miguel Arraes de dentro do palácio. Por acaso, a primeira pessoa que recebeu o capitão que transmitiu a voz de prisão a Arraes fui eu. Eu estava com Arraes na cozinha, quando sobe um capitão pelo elevador da residência do governo. Fui recebê-lo, pois todos estavam na janela vendo o movimento da rua. Ele queria falar com o governador. Eu disse: "Arraes, o oficial quer lhe falar e parece que a coisa está feia". Ele se levantou, com os olhos vermelhos de cansaço e ouvi o capitão dizer que ele estava preso, à disposição do Exército, e deveria indicar as pessoas que iriam ficar no palácio, pois todas as demais teriam que sair em dez minutos. O Arraes virou-se e disse: "mas em dez minutos não é possível esse pessoal todo descer, o senhor veio nesse elevador e viu que nele cabem três pessoas no máximo de cada vez!"

Eu saí com meu irmão e o prefeito. Fiquei numa situação crítica, porque não podia sair do Recife. Meu nome estava numa lista que era checada na hora do embarque. Acabei conseguindo sair com a proteção de um brigadeiro meu amigo. Consegui chegar ao Rio de Janeiro, onde fiquei clandestino, e depois fui para São Paulo.

Por que o senhor era procurado?
Na verdade, eu já era visado há algum tempo. Em 1962, houve um Congresso Mundial, chamado pelo Desarmamento Geral e a Paz e, por indicação do Marighella, fui dirigindo uma delegação do Brasil na qual estavam Lúcio Costa, Di Cavalcanti, Álvaro Lins, Oscar Niemeyer, Paula Souza, Domingos Velasco, Álvaro Faria, Helena Silveira entre outros. Fui para Paris receber as pessoas, hospedá-las e depois distribuí-las em dois aviões para a Tchecoslováquia. Nessa delegação estava um casal. A mulher, Lígia, muito rica e esposa do industrial Otto Willy Jordan, pela primeira vez tinha contato com o pessoal do partido e se entusiasmou com a novidade, pois estava acostumada àquela burguesia ignorante e fútil. Passou a se interessar pela vida do partido, a clandestinidade das pessoas e até chegou a ceder a casa para reuniões.

Essa senhora estava em vias de se separar do marido. Ele não devia ser uma pessoa de muito bom caráter porque, com apoio da Justiça, conseguiu internar a mulher num instituto de psiquiatria, como se fosse louca, e ela nos mandava bilhetes muito desesperadores. Judicialmente não havia o que fazer, porque a Justiça é de classe e não adiantava intervenção no processo, porque não éramos parte. Então, resolvemos assumir o problema dessa senhora. Eu, o Wilson Rahal e um procurador de justiça chegamos à conclusão de que a única maneira de evitar um mal maior para ela era seqüestrá-la do hospital. Um dia, por volta de 11 horas da noite, saímos eu, Helena Silveira, Jamil Haddad, enfim uma turma, e convocamos a imprensa para presenciar a operação, pois aquilo configurava cárcere privado. Chegamos ao hospital, tínhamos um médico na turma que pode entrar, foi até o quarto e a trouxe de camisola. Há até uma foto dela saindo de camisola e braço de dado com o poeta Jamil Haddad. Foi em 63, um escândalo que chegou até a ser capa da revista O Cruzeiro.

O Supremo Tribunal Federal reconheceu que o fato do marido ter internado a mulher da forma como fez configurava cárcere privado. Eu fiz uma representação, com base na resolução do STF, e pedi a abertura de um processo contra o marido e o juiz de São Paulo, que foi quem inclusive deu a essa história caráter político. A Justiça e a sociedade brasileiras são de tal forma que a gente fica sempre de queixo caído. Com a cumplicidade da Justiça, Lígia havia sido interditada e colocada em cárcere privado. Esse episódio foi encarado como uma questão política. Eu particularmente fui ajuizado, porque tudo isso era obra dos comunistas. E fui rotulado de líder comunista. Passam a me procurar, como dirigente da "gangue vermelha", como chamavam. Meu nome e minha fotografia saíram até numa revista alemã como sendo secretário do PC!

Assim, depois do golpe eu fui caçado por toda parte, até que houve um entendimento para que eu me apresentasse e que nada iria acontecer. Caí na besteira de aceitar e fui preso. Lavraram flagrante e me recolheram à Casa de Detenção. Mas a OAB impetrou um habeas corpus e saí 24 horas depois.

Nessa época, a polícia tinha muito pouca informação sobre o PCB e só ia conseguindo saber mais à medida que prendia os "suspeitos". A ingenuidade levava a denunciar. Caio Prado, por exemplo, foi um dos presos que, ao ser perguntado se conhecia determinada pessoa respondeu: "conheço". E sobre quais relações tinha com ela declarou: "nossas relações são marxistas". Nos depoimentos constam coisas dessa ordem. O João Bellini sem querer abriu o jogo, falou de todo mundo; Mário Schemberg também, Villanova Artigas entrou em detalhes. A polícia foi sabendo quem era do partido por intermédio dos depoimentos dessas pessoas.

Depois o senhor voltou a ser procurado?
Quando houve o golpe, minha casa e meu escritório foram invadidos. Levaram tudo que puderam, até cartas que minha mulher, que era húngara, recebia de seu país. Mandaram traduzir uma a uma e não havia nada de comprometedor.

Aí surgiu o processo sobre as cadernetas do Prestes, que envolvia 76 pessoas e era encabeçado pelo próprio Prestes, seguido de Marighella, Joaquim Câmara Ferreira, Artigas, Caio Prado Júnior e daí por diante, incluindo todo o Comitê Central do PCB. Meu nome era o quarto da lista. Eles me deram uma importância que eu não tinha.

Quando soube do processo, por intermédio de um policial ligado a nós, fui para o Rio de Janeiro, onde havia uma reunião na casa do Valério Konder, pai do Leandro e do Rodolfo, que era do Comitê Central, onde estava também o Astrojildo Pereira, jornalista, escritor, fundador do PC, o homem que levou os livros do Marx para Prestes na Bolívia, após a autodissolução da Coluna Prestes. Falei para o Astrojildo: "saia de casa porque você vai ser preso. Seu nome está na lista da prisão preventiva como o meu. Eu vim para cá para não ser preso". Eles riram, achavam que aquele golpe acabaria em pouco tempo.

Mas o Astrojildo foi preso e eu, com todos os elementos desse processo, passei a estudar a possibilidade de um habeas corpus. Como era o mesmo processo, precisava fazer dois habeas corpus: um para mim e outro para o Astrojildo. Convocamos o Sobral Pinto, que seria o meu advogado, e o Raul, advogado do Astrojildo. Ingressamos com o pedido de habeas corpus para nos excluirmos do processo. Demos entrada no Superior Tribunal Militar, com um relatório único para os dois casos. Quanto ao relator estávamos tranqüilos, pois era um civil, Ribeiro da Costa, um homem íntegro, de postura cívica.

Estava no Rio de Janeiro uma prima minha, viúva do embaixador do Brasil no Panamá. Ela me apresentou à filha do general Mourão, presidente do Superior Tribunal Militar, dizendo que eu gostaria que ela levasse ao pai o memorial dos nossos habeas corpus. Após explicar tudo para a moça, ela insistiu em me levar até seu pai. Eu me recusei, pois com minha prisão preventiva decretada, ele seria obrigado a me prender, pois além de militar era juiz. Fomos os três à casa do general, mas eu fiquei no carro. Quando as duas voltaram trouxeram o seguinte recado do general: eu não devia procurar mais ninguém e deixar o assunto com ele. No dia do julgamento, foi ele quem resolveu. Na hora em que o ministro Ribeiro da Costa fez o relatório, o próprio Mourão, que presidia o julgamento, interveio dizendo: "conheço o caso perfeitamente bem, isso é uma ignomínia, uma perseguição!"

Isso bastou para acabar com o julgamento?
Praticamente. Sobral Pinto fez a defesa oral, naquele estilo veemente, muito próprio dele. Então, por unanimidade foi concedido o habeas corpus por falta de justa causa e eu saí do processo. Aquele julgamento teve uma repercussão muito grande, sobretudo em São Paulo, onde o auditor militar, Tinoco Barreto, deu entrevista, dizendo ser um absurdo que eu tivesse recebido uma absolvição por meio de um habeas corpus. Então ele estendeu os efeitos do habeas corpus para todos os denunciados. Coisa que não estava dentro de sua competência e sim do Superior Tribunal Militar. No dia seguinte foi cassado. Sem querer, fiquei muito falado por causa do habeas corpus. Veio muita gente me procurar como se eu fosse um advogado criminalista, que nunca fui, por um motivo muito simples: tinha e tenho horror à polícia. Assim, de réu no processo, passei a ser defensor de todos aqueles companheiros. Conhecia todo o processo, tinha lido aquelas cadernetas e sabia cada detalhe. Aí trouxe para São Paulo o Heleno Fragoso, o Evaristo de Moraes Filho e o Sobral Pinto.

É por causa dessa fama que o senhor acaba sendo o advogado dos estudantes presos no Congresso da UNE em Ibiúna em 68?
Depois da prisão dos estudantes, meu escritório passou a ter filas de pessoas. Eram mães, pais, namoradas e amigos, todos me procuravam por causa dos presos. Foram momentos de muito trabalho e muita responsabilidade. Foram meus clientes José Dirceu, Vladimir Palmeira, Luís Travassos, Franklin Martins e muitos outros. Eles foram recolhidos em Santos, no Forte de Itaipu, cujo comandante era o famigerado coronel Erasmo Dias.

Então o senhor teve que se deparar com o coronel?
Não exatamente. Eu fui visitá-los. Chovia a cântaros e eu tive antes que me apresentar com um ofício do coronel comandante da Polícia Federal ao comandante militar de Santos. Foi a minha salvação. Apresentei-me ao comandante de Santos, que era um homem muito educado e não ao comandante do forte, o Erasmo Dias. Conversamos sobre coisas triviais e ele me deu seu cartão, com o telefone da residência. Como ele sabia que eu ia ao forte, disse que se houvesse alguma dificuldade que lhe telefonasse. Chegando lá, o Erasmo sumiu e ficamos ali como idiotas sem solução nenhuma. Os presos estavam na casa da mata, bem distante da sede do quartel. Quando apareceu o subcomandante, eu reclamei, e ele disse que quem resolvia isso era o comandante. O tempo foi passando, até que resolvi telefonar para o comandante da zona militar. Falei com ele, que fez uma advertência por telefone ao subcomandante. Dali por diante não tive mais dificuldades para falar com os rapazes e nunca vi o Erasmo Dias.

Aonde o senhor estava quando foi decretado o AI-5?
Eu estava na Suíça, a trabalho. Não podia voltar, porque a minha casa novamente tinha sido invadida. Falei com minha mulher por telefone e o conselho era: não volte tão cedo. Ela foi ao meu encontro, passamos uma temporada na Itália e também aproveitamos para visitar os pais dela no interior da Hungria. Felizmente minhas condições financeiras eram ótimas. Quando voltei para o Brasil, quatro meses depois, continuei a minha participação na vida social e política, coerente com meus ideais.

Na sua volta, o senhor sofreu algum tipo de perseguição?
Eu fui chamado apenas uma vez ao DOI-Codi. Fui levado de casa, ameaçado por metralhadora, pois a polícia estava atrás de um rapaz de quem eu era fiador. Fui submetido a interrogatório a respeito desse rapaz e depois me levaram para um tabelionato para ver se eu reconhecia uma moça, que seria a mulher dele, nas fichas de empregadas. Eu vi todas as fichas de funcionárias, a única que não tinha retrato era a dela. Portanto, não tinha como reconhecê-la e me liberaram.

Nesse período, o senhor continuava encontrando-se com o Marighella?
O Marighella sempre tinha sido muito ligado a mim e ao Villanova Artigas, que era um de seus grandes amigos. Sempre que vinha a São Paulo, nós três estávamos juntos. Quando ele entrou na clandestinidade, para nos preservar, não nos procurou mais. A polícia sabia da relação. Tanto é que quando ele foi preso, logo depois do golpe, naquele tiroteio num cinema da Tijuca, no Rio de Janeiro, e trazido para São Paulo, os policiais falavam no meu nome para ele, e ele fazia de conta que não entendia.

A última vez que falei com Marighella foi pelo telefone. Ele me recomendou o caso de um rapaz, que já estava na clandestinidade e tinha sido preso com nome falso assaltando um automóvel na Aclimação. O nome usado pelo rapaz era Alfredo Maia Júnior. Naquela época, a polícia ainda não relacionava este tipo de crime com política. Conseguimos a absolvição do rapaz, apesar de ele ter sido apanhado em flagrante e trocado tiros com a polícia.

Sofri uma grande emoção quando, dirigindo-me para algum lugar numa noite, ouvi pelo rádio a notícia da morte do Marighella, naquelas condições que sabemos. Era um homem de bem. Tinha muito bom humor. Um homem prestimoso, sério, não parecia um político. Tinha uma mente muito livre e gostava de conversar com todo mundo.

Como foi o episódio da prisão do Renato Tapajós por causa do livro Em Câmera Lenta, que ele tinha publicado em 1977?
Recordo esse fato com muita emoção, porque acho que cumpri um papel importantíssimo na defesa do Renato Tapajós, na verdade, a defesa do livro dele. No julgamento, estavam presentes artistas, intelectuais, que ficaram meio decepcionados com a concisão de minha defesa. Como eu tinha juntado ao processo três pareceres, um de Antonio Candido, outro do Paulo Emílio Salles Gomes e outro de Barbosa Lima Sobrinho, no dia do julgamento não tinha mais nada a fazer, era só dizer algumas palavras formais.

O promotor fez uma acusação feroz, falou mais de uma hora e meia e respondi com a maior sobriedade. Comecei a ler a carta do Barbosa Lima sobre o livro, em seguida a do Paulo Emílio Salles Gomes e depois a de Antonio Candido, uma beleza de parecer! Ele foi absolvido por unanimidade.

O senhor também foi grande amigo do Luiz Carlos Prestes. Quando o conheceu?
Eu o conheci no início de 36, quando ele já estava com a prisão preventiva decretada, no Rio de Janeiro, numa residência muito bonita em Ipanema. Fui apresentado a ele e fiquei muito emocionado. Daí por diante ficamos muito amigos. Já muitos anos depois, quando ele estava em Moscou, eu mandava correspondências por amigos que iam para a Europa. Recortava notícias de jornal, porque ele não tinha notícia nenhuma. Quando fui a Moscou convidado pelo Comitê Central do PCB, ele foi me receber no aeroporto, me levou até o hotel. Havia muita confiança entre nós, muita estima pessoal. As cartas e cartões que ele me mandou, os presentes que me deu, os tenho até hoje. Tudo tem a forma afetuosa como ele me tratava. No meu aniversário em 82 ele me deu de presente um livro de Portinari. E fiz uma montagem com a carta dele e a capa interna desse livro com o oferecimento dele, que guardo num quadro na parede de casa.

Quando vinha a São Paulo, ele ficava hospedado na minha casa. Eu morei muitos anos no Edifício São Luiz, atrás da escola Caetano de Campos, e ele tinha até a chave do apartamento. Ele era um homem meio seco, não era expansivo, mas me contava as histórias da sua vida. Uma vez me contou uma de João Alberto, quando estava em Buenos Aires. O Prestes já era comunista, já tinha lançado o Manifesto Comunista e o mostrou ao João Alberto, que falou: "estou de acordo com tudo que está escrito aí, mas não nasci para ser apóstolo... Você sim, nasceu para ser apóstolo". Mas Prestes era tão comedido e tão sério que sobre isso ele dizia: "não autorizo você a contar essa história a ninguém". Da Coluna, ele tinha afeição muito especial por João Alberto, Siqueira Campos e o general Cordeiro de Farias, mas com este foi um pouco intransigente.

Por quê?
Ele passou a ter ódio do general Cordeiro de Farias, porque ao ser preso no Rio, a polícia tinha dúvidas sobre sua identidade e esse general, que havia sido da Coluna, o reconheceu. Quando Cordeiro de Farias escreveu suas memórias fez grandes elogios a Prestes, mas Prestes nem a seu enterro foi. Ele era um homem muito intransigente, o que, para mim, era um defeito.

Prestes deveria ter sido o chefe militar da revolução de 30. Com seu prestígio, com o passado heróico da Coluna, era o homem natural para ser o chefe da revolução. Tanto é que o primeiro passaporte falso que ele teve foi dado pelo governo do Rio Grande do Sul, cujo governador era Getúlio Vargas. A revolução de 30 foi feita no Rio Grande, o Oswaldo Aranha foi o chefe civil de tudo, era o homem que encaminhava as coisas quando Getúlio não podia aparecer. Naquele tempo se falava do Prestes como o "Cavaleiro da Esperança", todo mundo tinha seu retrato. Eu mesmo, jovem, no meu quarto em Pernambuco, tinha um retrato bem grande do Prestes, com aquelas barbas. Era um homem muito louvado. Segundo ele me contou, quando já tinha lançado o Manifesto, o Siqueira Campos pediu que ele não o divulgasse imediatamente, que esperasse, pois tinha a esperança de que ele viesse para o Brasil chefiar a revolução. Então, Siqueira dizia: trocar Washington Luiz por Getúlio Vargas, isso não é revolução!

Prestes dizia que não podia chefiar uma revolução sem seguir determinados princípios. Para ele, uma revolução não podia ser feita para tirar "a" e botar "b". A revolução teria que ser feita para transformar a vida do país. Eu acho que ele deveria ter aceito a chefia da revolução de 30, porque tinha tudo para comandar o país. A imagem da sociedade era ele. Prestes pensava a reforma agrária, tinha a miséria do Brasil - que ele conhecia tão bem por causa da Coluna e que perdura até hoje - na cabeça. Ele tinha aquilo nos seus olhos, na sua sensibilidade. Mas ele se negou a chefiar a revolução. Para mim, foi um erro político.

Quando ele retornou em 79, depois da anistia, como estava vendo o país?
Nesse período, eu fiz de tudo para aproximá-lo de Lula, mas não consegui. Diversos encontros foram marcados e o Lula não compareceu. Marcava um encontro e o Prestes dizia: "ele não vem! ele não vem!". Depois o encontro acabou ocorrendo, mas não da maneira como deveria ser.

Nessa época ele tinha uma atividade extraordinária: ia para as portas dos sindicatos nas eleições. Às vezes me fazia acordar cedo para levá-lo na porta da Volkswagen, subia no caminhão, falava ao microfone. Acompanhava as eleições de metalúrgicos. Tinha uma saúde de ferro!

O senhor também manteve relações com Fernando Henrique Cardoso...
Fui candidato a deputado estadual por uma organização ligada ao Partido Comunista, chamada Panela Vazia, na década de 50. E o pai do Fernando Henrique era o candidato a deputado federal. Como freqüentei a casa dele algumas vezes, foi numa dessas ocasiões que conheci o Fernando Henrique. O pai gostava muito de mim, andávamos por esse interior afora em comícios. Naquele tempo eleição era muito difícil, porque a cédula não era única, oficial. Nós imprimíamos a cédula e tínhamos que entregá-la ao eleitor para que colocasse na urna. Era dificílimo, precisava de uma organização fantástica. Apesar disso, tivemos muitos votos, até fiquei surpreso. O general já era deputado federal, estava tentando a reeleição.

Com o Fernando Henrique sempre me dei bem. Agora, nunca mais tive contato com ele, tenho as minhas críticas e ele sabe que sou do PT. Ideais são uma coisa que o cidadão adquire na sua juventude. Aquele que muda de posição política depois de velho, é porque nunca teve ideal na sua juventude. Tudo que ele escreveu e disse, tudo aquilo era uma mistificação. Agora ele tem todo o poder nas mãos para conduzir o país em defesa dos interesses nacionais e se alia à direita, ao que há de mais rançoso neste país!

Como se deu a sua aproximação com o PT?
Fui observando e gostando do partido, me impressionaram as escolhas de candidatos. Fui vendo sua história, vi que era gente decente, séria. Eu queria ser militante, tanto que em meus cartões de visita está escrito: "advogado - militante do PT". Quando entrego esse cartão na Justiça, os juízes me olham espantados.

Hoje, eu sou do Partido dos Trabalhadores. Faço parte do Conselho Político da União do Povo e a minha expectativa é que o PT seja realmente um partido revolucionário. Tenho essa esperança: que o PT conquiste a sociedade brasileira e se torne um partido revolucionário!

Rose Spina é editora assistente de TD.

Zilah Abramo é vice-presidente da Fundação Perseu Abramo.