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O economista Paul Singer é um dos raros exemplos de alguém que soube aliar atividade acadêmica à militância política

Paul Singer, como secretário de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego do governo Lula. Foto: Arquivo pessoal

Paul Singer iniciou sua militância política no movimento sionista juvenil, freqüentou o Partido Socialista Brasileiro, fundou a Polop e o PT, integrando o seu primeiro Diretório Nacional. Tendo trabalhado como eletrotécnico, quem diria, liderou a histórica greve dos 300 mil que paralisou a indústria paulistana por mais de um mês em 1953. Formado em economia, doutorou-se em sociologia sob a orientação de Florestan Fernandes e integrou o quadro docente da Universidade de São Paulo até o AI-5, quando foi aposentado. Foi membro fundador do Cebrap. Sua produção teórica engloba títulos de economia, trabalho e socialismo. Hoje está à frente da Secretaria Nacional de Economia Solidária, do Ministério do Trabalho e Emprego.

Comecemos pela história de sua família na década de 30 em Viena, Áustria.
Nasci em 1932. Meu pai, que conheci muito pouco, porque morreu em 1934, era um típico pequeno comerciante judeu, dono de uma mercearia num subúrbio operário de Viena. Depois de sua morte, minha mãe, de origem operária, passou a tocar sozinha a mercearia e minha avó foi morar conosco, para cuidar de mim. Sou filho único. Em 1938 Hitler anexou a Áustria. As crianças estavam correndo com bandeirinhas nazistas para saudar as tropas. Pedi a minha mãe que me deixasse ir também. E ela disse: “Você não pode”. Aí descobri que eu era judeu.

Não havia educação religiosa em casa?
Não. Meus pais não eram praticantes. Logo em seguida, proibida de exercer a atividade econômica, minha mãe teve de vender o estoque da mercearia e nos mudamos para Viena. A partir de então o objetivo da família era ir embora, o que levou dois anos. A saída era livre, mas nenhum país estava recebendo refugiados. Sabia-se que ia acontecer um genocídio, os judeus que não conseguissem sair a tempo acabariam massacrados. Houve um momento bem angustiante, em que se conversou sobre a Inglaterra estar aceitando mil crianças judias. Havia uma chance de eu ser uma dessas crianças. Eu não queria me separar da minha mãe, óbvio, preferia morrer. Por fim, conseguimos o visto para o Brasil. Uma tia que emigrara em 1925 estava morando em São Paulo. Minha avó veio em 1939, e pôde chamar os filhos, que eram meu tio e minha mãe.

O senhor começou a estudar lá e prosseguiu aqui...
Fui alfabetizado em alemão. Já escrevia e lia muito. Logo que cheguei, me matricularam no Liceu Franco Brasileiro, atual Liceu Pasteur. Minha mãe, formada numa famosa oficina vienense de modas, costurava para senhoras de classe média, judias em geral, que falavam alemão. Em 1943 ela se casou de novo, com um judeu alemão que era praticamente um operário analfabeto em português.

E o interesse por política, quando tem início?
Em 1945, aos 13 anos, eu estava no terceiro ano do ginásio no Colégio Estadual Presidente Roosevelt, que era meio de elite. De repente, ao que tudo indica combinados entre si, todos os professores começaram a falar de política. Quando saímos para o recreio, um dos meus amigos disse que era do Partido Comunista.

Qual foi sua reação?
De simpatia. Descobri que havia uma ditadura que estava acabando, e isso tinha a ver com a provável vitória dos aliados na Segunda Guerra. Dois meses depois, a guerra chegou ao fim. Suspenderam-se as aulas, os professores eram a favor da democracia, e fomos todos para a Praça da Sé. Foi assim que me politizei e passei a freqüentar a família desse amigo, cujos pais e irmãos eram do PC. A partir de 1947 comecei a freqüentar o Partido Socialista. Como tinha 15 anos, não podia me filiar. Mas passava horas lendo na sede do partido, na Praça da Sé, onde havia publicações de esquerda do mundo todo.

Por que o Partido Socialista?
Lia o jornal do partido, a Folha Socialista. Era muito bom, com textos de Antonio Candido, Febus Gikovate, Fúlvio Abramo... Discutia política com meu grupo de amigos. Havia um que era anti-socialista e se declarava individualista. Outro, o Porchat, era muito reacionário. Eu vivia nesse ambiente. Fui sendo levado para a esquerda, imagino, porque era de família pobre, perseguida... Havia os cursos do Febus Gikovate, um médico que depois se tornou secretário-geral do partido em São Paulo. Era uma liderança muito inteligente. Foi meu principal mentor, em termos políticos.

Ele era marxista?
Claramente. O Partido Socialista do Brasil era muito fraquinho. Naquele momento, o grande partido de massas, correspondente ao PT, era o PCB, cuja legalização levou meses. Quando a imprensa do PCB veio à tona, quando Prestes saiu da cadeia e provocou grandes comícios de massa, um grande grupo de intelectuais paulistas foi em bloco para o Partido Comunista – e aquela esquerda perdeu completamente a visibilidade. Mas a discussão sobre socialismo, democracia, União Soviética estava acesa.

O que o fez ir para o PSB e não para o PC?
Quando houve as eleições municipais em São Paulo, em 1947, o PC já não podia concorrer com a própria bandeira. Então, entrou num partido fantasma e elegeu a nova bancada. Em 45 eleitos, acho que o PC elegeu quinze e o PSB um. Esses quinze que concorreram como candidatos de Prestes foram cassados antes da posse.

Já havia algum pensamento político nesse jovem?
Por volta de 1948, fui para o movimento juvenil judaico Dror e já me identificava como socialista. Entre os 15 e 16 anos, a argumentação da intelectualidade do Partido Socialista me convenceu inteiramente, e virei um ferrenho anti-stalinista.

Então já discutia com os comunistas?
Discutia muito com meu amigo Jorge Moreira. Eu queria fazer a revolução. Um dos livros que causaram forte impacto sobre mim foi Minha Vida, de Trotski.

Mesmo no Partido Socialista havia discussão sobre revolução?
Demais. O Partido Socialista tinha, muito parecido com o PT, uma série de alas. Havia uma ala stalinista, chamada de linha auxiliar. Eram simpatizantes do Partido Comunista que achavam que devia haver uma legenda de esquerda legal aliada do PC. Havia um grupo de ex-trotskistas: Febus, Fúlvio, Aristides Lobo e Mario Pedrosa. Havia os cristãos: Domingos Velasco, deputado na Assembléia Constituinte e senador, João Mangabeira, tipicamente um homem liberal que foi avançando e se tornou um convicto socialista.

O que o senhor lia nesse momento? Chegou a se posicionar como trotskista?
Não, nunca. Em 1948 ou 1949, li o Manifesto Comunista e entendi – uma visão coerente da história do mundo. Depois li a Crítica da Economia Política, do Marx, e, como não tinha os conhecimentos precedentes, não entendi nada e desisti. Depois fui ler as obras políticas: li muito Marx e, sobretudo, Engels, que era totalmente compreensível, depois Rosa Luxemburgo, Trotski e Lenin. Eu lia, escrevia e fazia as pessoas lerem. Tinha uma atividade ideológica muito intensa. Nunca li Stalin, em parte por preconceito. Tornei-me um marxista ortodoxo extremamente orgulhoso – e, quanto mais ortodoxo, mais orgulhoso eu era de sê-lo.

O senhor trabalhava nessa época?
Sim. Por dificuldade financeira, parei de estudar durante um ano, quando completei o ginásio, em 1947, e fui trabalhar como auxiliar de escritório. Trabalhei durante 1948 e, em 1949, entrei na Escola Técnica. Eu trabalhava no centro e, no fim do expediente, ia até a Praça da Sé, na sede do partido, e ficava lendo até as 8 da noite. Minha formação ideológica se deu assim.

E sua participação no movimento juvenil judaico?
Quando entrei para o Dror, em 1948, o movimento estava se constituindo, tinha uns 1.500 jovens. Nós éramos assimilados em Viena. Ao nos perseguirem enquanto judeus, nos tornamos intensamente judeus, porque era fundamental falar com os outros sobre chances de fugir. As pessoas se encontravam para falar só disso... Hitler nos tornou judeus. Minha mãe me matriculou num grupo de escoteiros judeus, junto com meus primos.

Ao terminar a guerra, a consciência das dimensões do holocausto causou uma profunda emoção e criou as condições para dividir a Palestina e criar Israel. O movimento sionista recrutava jovens no mundo inteiro, e em São Paulo também. Nós participávamos de um pequeno grupo de jovens judeus, editávamos um jornal mimeografado. Aos 16 anos escrevi um artigo no qual declarava que não era sionista, que para mim Jerusalém significava tanto quanto Roma para os cristãos. Mas havia uma polêmica, o resto do grupo era sionista... A razão de ser do grupo era eu, que não era sionista.

Passei a ir menos ao partido, mas a orientação do movimento era apoiar o PSB nas eleições. Fiquei no movimento até 1952. Na eleição de 1950, quando João Mangabeira foi candidato a presidente, fiquei numa banquinha com a Pagu, que conheci naquele dia. Eu, com 18 anos, e ela, já uma senhora, me contando sua vida.

Em seu livro Pássaros da Liberdade, Carla Pinsky diz que também participaram do Dror Isaac ­Karabtchevski, Clara Sverner, Gabriel Bolaffi, Bernardo Kucinski, Alberto Dines, entre outros. Parece que era uma espécie de ramificação do partido Mapai, de Ben Gurion e Golda Meir. E havia um outro, o Hashomer Hatzair, ligado ao partido ­Mapam. Ela cita ainda um ideólogo, Borokof.

Borokof era um intelectual russo, marxista, que escreveu um livro explicando o nomadismo dos judeus. Recupera a história dos judeus desde a Idade Média e mostra que se trata de um povo classe. Os judeus sempre foram inseridos no mundo cristão basicamente como agiotas, em função de que a religião cristã proibia os juros, ou então como comerciantes. Eram proibidos de ter terra, portanto não podiam ser agricultores. Como com o capitalismo a atividade financeira passa a ser extremamente importante, os judeus tornam-se igualmente importantes. Ele desenvolve uma dialética da migração. Os judeus eram um instrumento da classe dominante para explorar os camponeses, eram os que compravam o imposto inteiro, adiantavam o dinheiro ao rei e depois cobravam o imposto do povo. Dá para imaginar a popularidade deles. E quando a ira popular, o anti-semitismo tornava-se muito grande, o rei se unia ao povo, principalmente porque tinha dívidas com os judeus, e expulsava a todos. Depois de trinta, quarenta anos, seu sucessor entrava em negociação com os judeus para que voltassem, pois de novo precisava dos serviços deles. Essa é a história que Borokof recupera. E ele chega à conclusão de que os judeus só vão se livrar disso quando adquirirem a condição de donos de uma terra, de um país, em última análise.

O que cimenta esse movimento...
O movimento já existia, essa é uma interpretação bem marxista. Até hoje ainda existe essa duplicidade dos partidos, sendo que o Mapai vai na tradição do socialismo, da social-democracia, do trabalhismo, o grande partido que dirige a principal central sindical e depois dirige o Estado. Já na construção do Estado eles têm o domínio das Forças Armadas, das instituições comunitárias. Ben Gurion já é o chefe dos judeus antes de se transformar em chefe de Estado. O Mapam é uma corrente política que começa com o movimento juvenil. Eram os stalinistas sionistas desvinculados do partido. Havia um Partido Comunista lá também.

Os dois investiram na construção de kibutz?
Sim. O Mapai era maior, mas o outro não era insignificante. A partir do kibutz é que se cria o partido político, que tem uma certa representação e, no conflito com os árabes, toma uma posição melhor...

No fim dos anos 1940 o senhor inicia a Escola Técnica. Como se deu essa escolha?
Fui para a Escola Técnica porque a idéia era formar um kibutz em Israel, discutido no Dror. Tínhamos até um sítio perto de Jundiaí em que os jovens que iriam para Israel passavam um ano vivendo como se fosse em um kibutz. A idéia era viver em comunidade total, na qual se compartilham roupa, comida, ninguém tem dinheiro próprio... O primeiro grupo migrou para Israel em 1950 e criou um kibutz que existe até hoje. Depois disso, fez-se uma grande discussão a respeito do estudo universitário. O líder mais importante argumentou que, se todos fizessem universidade, não iriam para Israel. E, num kibutz, não precisávamos de tantos médicos, engenheiros; precisávamos de trabalhadores. A ordem era aprender profissões não universitárias.

O senhor então vai fazer escola técnica e trabalhar em metalúrgica. Havia também uma proposta de conviver com os operários?
Não. Esse argumento não havia. A idéia é que seríamos proletários em Israel. Fui para a Escola Técnica com as bênçãos do movimento e em seguida me tornei secretário-geral, em 1951. Na hora de decidir se ia para o sítio, entrei em crise pessoal, pois minha mãe dependia de mim. Convidei meus pais para irem comigo ao kibutz, mas minha mãe dizia: “Viver só entre judeus?! Antes a morte”. Então surgiram todas as minhas dúvidas sobre sionismo. Como eu não era sionista, me tornei sionista para estar no Dror... Vivia a empolgação de “o mundo marcha para o socialismo”, e o sionismo era uma parte disso. Descartei o sionismo, enquanto secretário-geral do movimento, e causei uma crise histórica. Houve uma assembléia, e eu disse que quem quisesse lutar pelo socialismo seria mais inteligente ficar no país em que estivesse porque estava claro que os judeus não voltariam todos para Israel. Deu uma tremenda discussão, e eu tive adesão de uma pessoa. Saímos os dois do movimento em 1952.

No ano seguinte o senhor já estava liderando uma greve?
Passei a freqüentar o Partido Socialista e, formado em eletrotécnica, fui trabalhar numa grande metalúrgica, a Atlas, na qual o movimento sindical estava em ascensão.

Fui convocado, com todos os trabalhadores metalúrgicos, a lutar contra a intervenção sindical, e pela primeira vez elegemos um operário, Remo Forli – antes eram todos interventores. Eu me organizei dentro da Atlas e armamos uma campanha salarial que resultou na greve de 1953, que teve início em 22 de março.

Uma semana antes, em 18 de março, houve a Marcha das Panelas Vazias.
O PC tinha um movimento antiinflação. As panelas vazias eram o símbolo do roubo que a inflação causava nos assalariados. Havia um aparelhamento do movimento e do sindicato pelo PC, que era amplamente majoritário nas assembléias.

E sua relação com o Partido Socialista?
Eu não era formalmente membro porque não era naturalizado. Escrevia na Folha Socialista. Há uma série de artigos durante a greve.

E como foi a greve?
Eu estava no sindicato fazia um ano e gastávamos parte das assembléias nos convencendo de que havia condição de fazer uma greve. Uma geração inteira não fizera greve, na época do Estado Novo. Depois veio um período de liberdade sindical de um ano e, em 1946, Dutra interveio em todos os sindicatos que eram controlados principalmente pelo PC. Então Getúlio, como presidente, começou a soltar as amarras. O Partido Comunista tentou fazer uma greve de cinco categorias: têxteis, metalúrgicos, gráficos, vidreiros e marceneiros. Não deu certo. Tínhamos dado um ultimato aos patrões, queríamos 32%. Quando venceu o prazo que havíamos dado, estávamos prontos para sair, mas a luta dos têxteis não estava engrenada, e o PC puxou o freio. A massa ficou absolutamente desencantada. Uma semana depois retomamos as assembléias. Nunca vi tanto orador da Atlas junto.

E nas assembléias apareciam distinções?
Sim, mas na Atlas não havia nenhuma liderança comunista conhecida. Os mais conhecidos eram o Cristal e o Alemão, ambos da Juventude Operária Católica, e eu. Depois dessa enorme assembléia no sindicato, no dia seguinte a fábrica parou. A greve foi muito popular e forte, durou mais de um mês. A prefeitura, para manter a ordem pública, nos cedeu o estádio da Mooca, onde reuníamos trabalhadores de todas as categorias. Eu tinha 20 anos, só tinha lido; prática, zero. Um estádio em que cabiam milhares de grevistas e um microfone. Virei liderança.

Qual era o contingente?
Essa greve ficou conhecida como a dos 300 mil trabalhadores, em uma cidade de 2 milhões de habitantes! Foi vitoriosa. O Tribunal Regional do Trabalho decretou um aumento de 32%, com um teto de 800 cruzeiros. Isso porque os tecelões estavam querendo um aumento uniforme de 800 cruzeiros. Todas as categorias se saíram bem. Não houve demissões.

Fiquei na Atlas um ano ainda e fui membro da Comissão de Fábrica, eleita diretamente pelos trabalhadores. Depois fui trabalhar na Philips. Com a minha naturalização em 1954, me tornei membro regular do partido, intensificando minha participação, sem deixar o sindicato. Na Philips, fizemos uma greve geral pelo décimo terceiro salário, que foi uma conquista dos trabalhadores do Brasil inteiro.

Como foi a decisão de fazer Economia?
Eu me casei em 1955, com uma moça que era bem mais jovem que eu, ainda era secundarista. Os pais dela eram austríacos, a mãe era judia. Eles insistiam que eu fosse para a universidade. No fim me convenceram. Se eu fosse estudar Economia não precisaria trabalhar numa fábrica ou em uma repartição o dia inteiro. Isso pesou bastante.

O que a Faculdade de Economia promoveu em sua vida?
Essa decisão mudou completamente a minha vida. Percebi que passei quarenta anos da minha vida na USP. A princípio continuei como eletrotécnico, depois fui trabalhar por meio período numa central de contabilidade para as ferrovias, e podia estudar de manhã. Tornei-me assistente do professor Mário Wagner Vieira da Cunha, um antropólogo que, por falta de melhor opção, virou professor de Ciência da Administração. Em 1959 me formei. Em seguida, como era normal, entrava-se na universidade a convite de um catedrático.

Em 1960 o senhor já era professor universitário?
Em 1960, eu, Lenina Polmeranz, Maurício Segall e Juarez Brandão Lopes nos tornamos assistentes de Mário Wagner.

O grupo de estudos de O Capital tem início em 1958. Como se dá sua participação? Qual era a dinâmica dos seminários?
A convite de Fernando Novais, que era assistente de Alice Canabrava e nos dava um curso de História. Como ele era marxista, nos entendíamos.

José Arthur Gianotti havia passado dois anos na França e voltou com a idéia: “Vamos formar um grupo para estudar juntos textos clássicos. Vamos começar por O Capital”. Convenceu Fernando Henrique, Ruth, Otávio Ianni, Porchat... Eu não conhecia nenhum deles. Na segunda reunião, Novais me levou. Éramos basicamente acadêmicos de esquerda – eu era ainda estudante e os outros jovens professores. Tínhamos enorme sede intelectual. Fazía­mos um seminário a cada quinze dias, sábado à tarde, e estudávamos várias horas. Fizemos uma lista alfabética dos membros, cada reunião na casa de um. Ficamos três ou quatro anos estudando O Capital. Todos preparavam e alguém apresentava. Líamos em línguas diferentes: Gianotti em francês, eu em alemão, outros em espanhol... Nosso orientador metodológico era Gianotti. O grupo durou até 1965.

E por que acabou?
Com o golpe, eu, por exemplo, tive de sair da universidade, e acabei indo para a Hidroservice. Fernando Henrique teve ordem de prisão.

O que ele tinha de particular?
Ele era uma liderança universitária importante, foi membro do Conselho Universitário, representando os assistentes. Era bom político, uma liderança da esquerda na USP. Começaram a prender os membros da direção anterior do partido. As pessoas ficavam no Dops alguns dias, davam depoimento e eram soltas. E me diziam: “Eu vi o teu nome na lista”. Eu tinha de largar o trabalho, a atividade política, ou passar pelo mesmo que os outros. E resolvi passar por isso também, só que as prisões pararam antes de chegar em mim. O dilema de Fernando era um pouco se deixar prender ou não. Então ele foi para um sítio e depois para o Chile. E assumiu uma posição lá na Cepal. Ruth ainda ficou algum tempo conosco, e o grupo continuou se reunindo. Agora para estudar Keynes, Rosa Luxemburgo.

Todos tinham militância partidária?
Partidária, somente eu. Os outros eram intelectuais de esquerda, mas sem vínculo partidário. Tinham tido vínculo partidário até 1956, no Partido Comunista.

Qual seu vínculo com a Política Operária, a Polop?
Fui fundador em 1959. Erich Sachs e eu éramos praticamente os líderes daquele momento da Polop.

Em 1953, nós do PSB elegemos Jânio e participamos do governo. Fúlvio Abramo foi secretário de Abastecimento e um outro membro era secretário de Obras. Jânio no início foi bastante progressista, governava com os chamados comitês. Em 1955, quando foi eleito governador, o partido se dividiu, e os janistas tomaram conta do Partido Socialista. Enfim, em 1956 fomos expulsos eleitoralmente da direção.

Erich Sachs então entrou em contato comigo, para eu escrever para sua revista. Ele era um alemão, gráfico, que no Brasil se ligara ao grupo socialista democrata, formado principalmente na Faculdade de Direito. Ele vinha de uma dissidência do Partido Comunista Alemão. O nome Política Operária ele trouxe da Alemanha, pois assim se chamava a facção dele. Nos aproximamos então politicamente, por causa da revista, e decidimos formar uma nova facção, mas tendendo a um partido político de esquerda. Fizemos uma assembléia, na qual estavam Michel Löwy, Emir e Éder Sader, Theotônio dos Santos, Juarez de Brito, Simon Schwartzman, entre outros.

Era a esquerda do Partido Socialista de São Paulo, com a esquerda do PTB de Minas e um grupo do Rio de Janeiro também do Partido Socialista.

Por que formar um novo partido?
O Partido Socialista estava completamente na mão dos janistas e tínhamos divergências fundamentais com o PC. Praticamente alguns meses depois, os janistas foram derrotados no Partido Socialista e saíram em massa, pois o partido apoiava Lott para a eleição presidencial em 1960. Voltamos e tomamos conta.

Coloquei para a Polop que devería­mos assumir a direção do partido, pois não tinha cabimento ficarmos numa organização menor, que pretendia um dia virar partido, quando havia uma legenda que tinha uma história etc. Durante algum tempo tive duas camisas, dirigente do PSB e membro da Polop.

Acabei me afastando da Polop por falta de tempo, não que houvesse divergência política. Isso é de 1960 em diante, período que antecede o golpe militar e o PSB se torna, em São Paulo, o pólo da esquerda. Havia reuniões com o PC, os trotskistas, todos que queriam militar.

Ele abrigava os comunistas também?
Não como membros, mas como aliados, que usavam as instalações e a legenda do Partido Socialista.

No PSB o senhor ficou até quando?
Até 1965, quando o AI-2 acabou com os partidos e criou o bipartidarismo.

Nas principais assembléias estudantis do Brasil, aparece uma certa tripartição, PCB, AP e Polop, que era bem mais “radical” do que o PSB. Que balanço o senhor faz do papel da Polop?
Era um grupo pequeno muito intelectualizado. Erich Sachs era um intelectual, o fato de ser gráfico não significava nada. Éramos da classe operária, mas como intelectuais.

Eu me sentia absolutamente livre para assumir qualquer posição que eu achasse lógica. Por exemplo, nunca aceitei a idéia de que não houvesse feudalismo no Brasil. É só olhar como é que funcionava o latifúndio no Brasil. No fim da escravidão, a agricultura brasileira passou a ter um modo de produção muito semelhante à servidão de gleba. Há uma população que trabalha na terra do patrão ou como meeira. São relações de produção clássicas servis. Inclusive a servidão política, o voto de cabresto. Muito importante na época foram as Ligas Camponesas, que tinham sentido de luta antifeudal. Os primeiros camponeses que obtiveram uma vitória histórica, em Pernambuco, eram arrendatários.

Podemos dizer que o senhor era um dos principais elaboradores marxistas do Brasil nesse período. Sua bibliografia se intensifica a partir de 1968.
Aparentemente influenciei bastante. Estava ativo como teórico da esquerda desde meados dos anos 50. Participei praticamente de todas as revistas que foram feitas, escrevi um artigo sobre crises econômicas que repercutiu muito na Civilização Brasileira, logo depois do golpe militar.

O que o golpe de 64 muda na sua vida?
Quando veio o golpe, eu estava fazendo minha tese sobre Teoria do Desenvolvimento. Algumas semanas depois, ainda em abril de 1964, Mário Wagner me disse que já podia se aposentar e estava esperando apenas que eu fizesse o doutoramento para sucedê-lo. Mas a congregação, Delfim e os outros, avisou-o que, com a mudança da situação política, não havia condições de eu assumir a cátedra de Ciências da Administração. Por isso, ele resolveu se aposentar e pediu a mim e a Lenina que nos demitíssemos. Fui trabalhar na Hidroservice e dava aulas em Rio Claro e Araraquara.

Em 1965, Elza Berquó, professora de Matemática e Estatística, criou um centro de dinâmica populacional na Faculdade de Higiene e Saúde Pública, e Florestan Fernandes me indicou. Eu trabalhava para ele no Centro de Sociologia do Trabalho em um estudo de cinco cidades brasileiras, que virou minha tese de doutoramento – São Paulo, Belo Horizonte, Blumenau, Porto Alegre e Recife. Ele escolheu as cidades pelas diferenças regionais e tinha uma idéia de que essas diferenças não se deviam só aos fatores econômicos, mas também políticos e sociais.

Ele foi seu orientador?
Quando entreguei a última cidade, ele leu e disse: “Isso dá uma tese. Você não quer fazer um doutoramento em Sociologia?” Era o que eu mais queria, e ele se ofereceu para ser meu orientador. Duas semanas depois de defender a tese na Sociologia, fui para Princeton, estudar demografia. Passei um ano nos Estados Unidos, de setembro de 1966 a setembro de 1967.

O senhor já tinha seus filhos?
André tinha 8 anos, Suzana tinha pouco mais de 1 ano e Helena foi concebida lá e nasceu no Brasil.

O Delfim foi seu professor?
Foi, excelente professor. E na época não era inteiramente progressista, mas tendia a ser. Eu o convidei para ser membro da banca, quando meu orientador era Florestan. Ele acabou não participando porque assumiu a Secretaria da Fazenda de Laudo Natel.

E em 1968 por onde o senhor andava?
A universidade parou. Entramos em greve, formamos comitês de professores e alunos para discutir uma universidade, democrática, respondendo às demandas da maioria da sociedade. E alunos de vários grêmios da Faculdade de Filosofia me convidaram para dar um curso de Economia Política, no Teatro de Arena, durante meses. Era emocionante, porque ficava escuro, com uma luz sobre mim, e eu não via ninguém. Sempre lotado. Eu falava, depois havia um debate e gravavam. Na aula seguinte, já vendiam a apostila da aula anterior. Eu fazia uma comparação mais ou menos sistemática entre marxismo, keynesianismo e os neoclássicos. Depois essas apostilas foram lidas na clandestinidade, porque logo fui aposentado, no começo de 1969. Nos anos 70, transformei-as em livro, Curso de Introdução à Economia Política.

Eu me perguntava se aqueles professores da USP não viam um pouco de exagero na atitude dos estudantes.
Nós criamos, exatamente para ser um contraponto ao movimento estudantil, a Associação Paulista de Docentes do Ensino Superior, da qual fui secretário. Batalhávamos para que houvesse uma universidade sem fim. Eu achava que a universidade e o trabalho profissional deveriam ter inter-relação pela vida inteira – educação permanente. Discutimos a universidade, a crítica entre o afastamento da teoria e a prática, como alimentar a universidade com os aprendizados que as pessoas adquiriam na prática. Imaginei até uma pós-graduação em que os profissionais viriam à universidade para ensinar também.

Fale um pouco da sua cassação.
Até sair o Ato Institucional, não esperávamos. Entre o 13 de dezembro, o AI-5, e o 30 de abril, que é nossa aposentadoria, nós nos reunimos, pois queríamos formar o Cebrap. Seríamos expulsos da universidade, não iríamos ficar, tanto que pedi a contagem de tempo. Imaginei que poderia ser uma aposentadoria, como acabou sendo. Decidimos criar um centro de estudos. A Fundação Ford, que financiava pesquisas nossas na Faculdade de Saúde Pública, se ofereceu para apoiar um centro nosso. Criamos o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, que acolheu os aposentados e um número significativo de professores não-aposentados, que estavam pondo a cabeça em risco naquele momento. Afinal, saímos da universidade como subversivos – com a censura total à imprensa, só era publicada a versão do governo –, e dois meses depois era criado um centro de estudos com Juarez Brandão Lopes, Cândido Procópio Camargo... Os aposentados eram Fernando Henrique, Gianotti, Elza Berquó, eu e Octavio Ianni. E tínhamos cobertura do outro grupo de amigos que fez parte do grupo de O Capital.

Virou um espaço de elaboração, em uma época de fechamento total?
O nome tinha de ser o mais neutro possível. Ingenuidade, pois era só olhar para os nomes que estavam lá. Fomos perseguidos somente cinco anos depois, em 1974.

Houve prisões, por quê?
Início do governo Geisel. Pelo que sei, houve uma reação da linha-dura contra ele, criando fatos consumados. Setores que se sentiam ameaçados pelo Golbery e pelo Geisel, essa é a minha interpretação.

Um companheiro que já faleceu – Régis Castro Andrade – saiu do Cebrap porque ia para o exterior. Entre outras coisas, ele ia trabalhar com um material clandestino que tinha sido editado e estava enterrado no seu jardim. Ele desenterrou a papelada, despachou para ele próprio para a Inglaterra ou para a Escócia, e o boy do Cebrap levou ao correio. O pacote, todo molhado, se abriu, alguém leu e chamou a polícia. Era material totalmente subversivo. A polícia chamou o boy, que se identificou como sendo do Cebrap. No dia seguinte, Régis, Vinícius Caldeira Brant e eu fomos presos. Cada um na sua casa, de madrugada...

E como foi a prisão?
Quando entrei na Oban, tinha certeza de que apanharia, mas não aconteceu. Perguntaram: “Por que você foi preso?”. Respondi: “Vocês que me prenderam, vocês que sabem”. “Você sabe. Nós não prendemos seu vizinho...” Esse discurso dava medo. Tive de inventar. Não encontrava nenhuma razão para ser preso. Na primeira noite havia uma gritaria. Era o Vinícius. Fiquei sozinho numa cela. Botavam o capuz, me levavam para o interrogatório. Fizeram eu escrever minha biografia. Perguntaram se eu era marxista, disse que sim. Embora eu achasse naquele momento que não era mais. Depois perguntaram: “Quem mais é marxista no Cebrap?”. Como não queria ser torturado, pus todo mundo, inclusive o boy.

Por que não se sentia mais marxista?
Aos poucos fui descobrindo, digamos, erros em Marx. Não era um autor que tudo o que tinha escrito era correto. Durante uma fase da minha vida Marx era o grande mestre, quanto mais eu lia, mais me maravilhava. Depois que ele morreu, aconteceram coisas que sua visão teórica não cobre mais. Deixei de me considerar marxista quando descobri que ser marxista significaria jamais questionar qualquer coisa que Marx tivesse assinado.

E Fernando Henrique, nunca prenderam...?
Não. Depois de uma semana, quando fui solto, todos no Cebrap foram intimados a prestar depoimento na Oban.

O Cebrap fez um trabalho com dom Paulo Evaristo Arns...
O livro chama-se 1975, Crescimento e Pobreza, e foi editado em 1976. Tínhamos uma colaboração estreita com dom Paulo. Nos encontrávamos regularmente, pessoas do arcebispado e intelectuais do Cebrap, para discutir a situação política. E foi nesse contexto que dom Paulo pediu uma análise de São Paulo, no auge do milagre econômico. Foi um desafio. Vinícius e Cândido Procópio editaram o livro, que virou best-seller imediatamente. Então colocaram uma bomba no Cebrap. Todo mundo acha que tem a ver com o livro. Houve um terrorismo de direita. A bomba só causou estragos materiais.

Sua participação no Cebrap vai até quando?
Até 1988, quando me afastei para participar da administração de Luiza Erundina, como secretário de Planejamento.

Como foi o período da PUC?
Estávamos já em plena abertura, mas ainda vivíamos os efeitos dos Atos Institucionais, que proibiam que aposentados lecionassem em universidades oficiais ou que tivessem subsídios públicos. A PUC tinha subsídios públicos, pequenos. Então, formalmente, a PUC não podia me contratar. Na minha cabeça, 1978 é o ano da virada, em que a ditadura termina. Não o regime militar, mas a ditadura. Nós reconquistamos a liberdade de expressão e o direito de greve – e, portanto, de organização sindical. Em 1979 a PUC me convidou para dar aula de Economia. Fiquei quatro anos lá, fui chefe do Departamento de Economia.

Quando o senhor voltou à USP?
Voltei em 1980, com a Anistia.

Em sua bibliografia é explícita a discussão do socialismo e mais recentemente temos sua dedicação à Economia Solidária. Como esses temas entraram em sua vida?
Em 1979 começou uma guerra entre a China e o Vietnã, e eu estava indo para a Índia. Guerra entre países socialistas me impressiona profundamente. Aproveitei e escrevi um opúsculo, O Que é o Socialismo Hoje, e comecei a discutir que socialismo não é somente a experiência stalinista, mas tampouco é social-democracia. O socialismo terá de frutificar na sociedade primeiro. Em 1996, depois que passei quatro anos na Prefeitura de São Paulo, Luiza Erundina foi novamente candidata a prefeita e Aloizio Mercadante a vice-prefeito. Nessa ocasião, ocorreu-me que o grande problema da cidade era o desemprego, que estava crescendo muito. Daí me veio a idéia de que, se conseguíssemos organizar esse mais de 1 milhão de desempregados, uns trabalhando para os outros, porque todos precisam consumir – são consumidores e trabalhadores ociosos –, e criar uma moeda para que eles pudessem transacionar o que produzissem, teríamos um precedente maravilhoso. Essa é uma forma não-capitalista de atacar o problema do desemprego. Expus a idéia, e eles gostaram.

E como essa idéia evoluiu?
A partir daquele momento comecei a receber fax que me davam conta de que aquilo que eu propunha já estava acontecendo nos Estados Unidos, no Canadá, na Argentina. Meu projeto era um grupo de troca gigantesco. Em dezembro de 1996, a CUT me convidou para uma discussão sobre Economia Solidária, com a participação da Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária, a Anteag. Então entrei no movimento.

Quanto a sua filiação teórica, o senhor não se define hoje como marxista, mas socialista sim.
Sem dúvida. E marxista no sentido de continuar basicamente acreditando na visão de mundo de Marx, que o formulou de uma forma muito precisa.

Fazendo um balanço de seus livros, o que o senhor acha mais importante?
Um dos livros que são marcos para mim e também para o movimento é Utopia Militante. Ao ler O Que é o Socialismo Hoje e Utopia Militante, que é de quase vinte anos depois, percebe-se uma trajetória. Tenho um livro, chamado Aprender Economia, que traz um capítulo sobre o socialismo. Eu o reli recentemente e percebi que é um ponto de inflexão, estava caminhando para o que deu depois na Utopia Militante. É uma linha, em Economia Política do Trabalho, há uma contribuição para uma teoria do emprego não estritamente keynesiana, mas marxista ao mesmo tempo. É uma obra muito variada. Algumas delas são puramente didáticas, outras de divulgação.

Como o senhor chegou ao PT?
Conheci Lula em 1978. Eu estava preparando um segundo livro em parceria com Vinícius Caldeira Brandt para dom Paulo Evaristo Arns, sobre os movimentos sociais em São Paulo. Para o capítulo sobre sindicatos, fiz a entrevista com ele. Foi a primeira aproximação. Ele dizia que vários dirigentes sindicais, que achávamos que eram pelegos, não eram pelegos. Era muito crítico às oposições sindicais.

Em 1979, com a Anistia, mudou tudo. Abriram-se as perspectivas de abolir o bipartidarismo e, com a volta dos exilados, houve diversas iniciativas de formar um novo partido socialista. Uma reunia remanescentes do antigo PSB, como Febus Gikovate, Antonio Costa Correa, Perseu Abramo, Chico de Oliveira e eu, juntamente com outros militantes, como Almino Afonso e Plínio de Arruda Sampaio. Participaram também intelectuais do Cebrap, como Fernando Henrique, Francisco Weffort, José Álvaro Moysés e Vinícius Caldeira Brant. Outra era composta por expoentes do novo sindicalismo: Lula, Jacó Bitar, Olívio Dutra e muitos outros, além de militantes de diferentes grupos de esquerda como, por exemplo, Paulo Skromov, então presidente do Sindicato dos Coureiros.

Ocorreram muitas reuniões paralelas e algumas em busca de convergência. Uma particularmente importante aconteceu em São Bernardo, com boa parte das pessoas citadas. Um bom número, a começar por Lula, manifestou-se pela imediata constituição de um partido dos trabalhadores, como agremiação de classe, com bandeiras próprias, sem subordinação a alianças com representantes de classe capitalistas. Fernando Henrique e Almino Afonso defenderam a posição de que, apesar da abertura política, o regime militar continuava no poder e antes que ele fosse derrubado a frente única de resistência, representada pelo MDB (depois PMDB), não deveria ser rompida. Criar um partido de esquerda independente seria, naquele momento, fazer o jogo do regime, que abriu a possibilidade de formar mais partidos exatamente com o objetivo de dividir, e assim enfraquecer, a oposição.

Depois dessa reunião, as águas se dividiram. A maioria dos que almejavam fundar um partido socialista aderiu ao projeto do PT, inclusive Weffort, Plínio de Arruda Sampaio, Febus Gikovate, Perseu Abramo, Chico de Oliveira, Vinícius e eu. Ao mesmo tempo, os comitês provisórios do PT atraíam militantes de inúmeros grupos políticos trotskistas, marxistas, socialistas cristãos, ativistas das Comunidades Eclesiais de Base, professores, estudantes e participantes de movimentos feministas, ambientalistas, de bairro etc.

Quando chegou o grande dia, em fevereiro de 1980, o Salão do Colégio Sion estava repleto de gente de esquerda, muitos egressos do exílio ou das prisões, que há tempos não se viam. Foi um congraçamento, coroado pela abertura do congresso por figuras emblemáticas das lutas pelo socialismo, como Mário Pedrosa, Manoel Conceição, Apolônio de Carvalho e Sérgio Buarque de Holanda. Tínhamos a impressão de que o PT representaria o recomeço de uma jornada que havia se iniciado com as primeiras organizações operárias, do início do século, e as grandes jornadas tenentistas, que culminaram na Coluna Prestes e na Revolução de 1930. Recomeço, que seria liderado desta vez pelo proletariado das grandes concentrações industriais, como o ABC paulista.

Paulo Vannuchi é coordenador executivo do Instituto Cidadania e membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate

Rose Spina é editora de Teoria e Debate