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Em menos de dez anos, Guarulhos vira a página da história das ligações clandestinas e saneamento precário, para assumir processo de preservação ambiental

A negação histórica da existência de um povo palestino, necessária para afirmar o status da terra como res nullius, como uma terra sem povo destinada ao povo a que fora prometida, mantém-se constante até hoje e é acompanhada da vilificação daqueles que estão “do outro lado”, daqueles menos civilizados, dos radicais, dos amantes da morte

Estação de tratamento de esgoto de Bonsucesso

Estação de tratamento de esgoto de Bonsucesso. Foto: Luciney Martins

Bairros castigados pela falta de água por mais de quinze dias, tratamento de esgoto zero e a sistemática acusação de responsável pela degradação do Rio Tietê. Essa foi a realidade de Guarulhos até o início dos anos 2000. Agenor Bueno da Motta, morador do Jardim Novo Portugal, há 25 anos, viveu isso. “Quando cheguei aqui não existia água tratada, tirávamos do poço, e o esgoto corria a céu aberto. Guarulhos cobrava pelo tratamento de esgoto e pelo abastecimento de água sem garanti-los à população. Ficávamos três, quatro dias sem água no bairro”, recorda o radialista aposentado, que em 1995 decidiu denunciar esse e outros problemas ambientais no livro O Sequestro da índia Jupiara.

Na segunda cidade mais populosa (cerca de 1,2 milhão de habitantes) do estado de São Paulo, a preocupação em garantir infraestrutura digna aos moradores passou de incômodo a política pública prioritária na gestão do petista Elói Pietá. Embora represente o segundo Produto Interno Bruto (PIB) do país – R$ 32,5 milhões estimados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) –, perdendo apenas para a capital paulista, abrigue o principal aeroporto internacional do Brasil (Governador Franco Montoro) e grandes empresas de alto valor agregado, somente a partir da primeira gestão petista a cidade conseguiu chegar ao século 20.

Até então cerca de 65% da área urbanizada estava atendida por sistemas de afastamento de esgoto. Em menos de dez anos, a cidade que completará em 8 de dezembro próximo 452 de fundação vai deixando nas duas estações de tratamento de esgoto já em funcionamento, e uma terceira em construção, a fama de “poluidor” para assumir a vanguarda no processo de preservação.

Primeiro com o prefeito Elói Pietá e posteriormente com Sebastião Almeida, o governo de Guarulhos garantiu a universalização do abastecimento de água e a capacidade em tratamento de esgoto, que saiu de zero para 35%.

“Na prática”, explica o prefeito Sebastião Almeida, “houve nas administrações Elói Pietá o planejamento de um sistema de abastecimento para reduzir esse problema, paralelo ao tratamento de esgoto, mobilidade urbana, transporte e educação, ideias estruturantes para que nossa gestão pudesse transformar em projetos, como a coleta e tratamento de esgoto”.

Para se ter uma ideia de aonde chegou a ausência do poder público, a equipe de gestão municipal recorda que a alteração de custos na tarifa de água era feita por uma empresa contratada pelo Serviço Autônomo de Água e Esgoto (Saae). “Existiam bairros, como o do Bambi, que ficavam mais de quinze dias sem água. Porque o sistema estava programado para receber água uma vez por semana, mas havia uma sobrecarga, e ficava sem abastecimento. Por outro lado, no bairro do Fortaleza a questão do abastecimento não era controlada pelo Saae, mas por um ente particular – os moradores pagavam a água para um senhor. É onde o Estado se omite e o privado ocupa”, compara o engenheiro Afrânio de Paula Sobrinho, superintendente do Saae de Guarulhos.

Antes, os recursos não chegavam

A Região Metropolitana de São Paulo foi planejada em seu conjunto para o tratamento de esgoto centralizado na década de 1950. Na opinião do engenheiro isso fazia sentido à época do “Brasil Grande”, porque o mesmo município muitas vezes compreende duas ou três bacias. “Os recursos, porém, não chegaram, a coisa não aconteceu, e a região se desenvolveu sem essa infraestrutura”, acrescenta o superintendente.

Ao assumir a prefeitura, a gestão petista não contava sequer com o mapa de abastecimento da cidade. A primeira providência para enfrentar a “política do puxadinho” foi a elaboração a partir de 2002 do Plano Diretor de Água e no ano seguinte do Plano Diretor de Esgoto, o que culminou no Plano Diretor do Sistema de Esgotamento Sanitário (PDSE) do Município de Guarulhos, que norteia as ações até 2028, avaliando alternativas e indicando os recursos necessários para a coleta, o afastamento e o tratamento dos esgotos gerados no município.

O plano considerou também os estudos da década de 1950, uma vez que Guarulhos fazia parte do Programa de Despoluição do Tietê, por meio de duas unidades de tratamento – São Miguel Paulista e Parque Novo Mundo. Mas, como o município passou por modificações, como a implantação do aeroporto e a ocupação das margens dos córregos, a proposta final indicou a implantação de sete subsistemas. Permaneceriam assim aquelas duas unidades no Sistema Metropolitano para tratamento, por serem o caminho natural do esgoto, e outros cinco seriam implantados com unidades próprias pelo município, de acordo com o dirigente do Saae.

Prefeito Sebastião Almeida Foto: Luciney Martins

Embora integre a bacia hidrográfica do Rio Tietê, Guarulhos não foi contemplado com recursos oriundos do Programa de Despoluição, que caminha para a terceira etapa e soma mais de R$ 3,6 bilhões em investimentos (com a recente aprovação pelo Senado de empréstimo de R$ 1 bilhão do Banco Interamericano de Desenvolvimento). Isso porque o programa restringe-se ao campo de atuação da Companhia de Saneamento Básico do Estado (Sabesp), excluindo cidades com sistema de coleta e tratamento de esgoto municipalizado. “Nunca recebemos nada do governo do estado para saneamento”, acrescenta o engenheiro do Saae, ao pôr em dúvida se de fato há uma política de saneamento estadual, dada a restrição que o programa faz a cidades com sistema próprio de coleta e tratamento de esgoto.

Na avaliação do prefeito de Guarulhos, o estado não firma parcerias para desenvolver as políticas públicas e obras das quais o município precisa. “O Rio Baquirivu-Guaçu, que corta a cidade, é um exemplo. Sofreu um impacto muito grande pela construção do aeroporto, por conta do aterro que ocasiona grandes enchentes, e estamos pedindo sua canalização para a construção de uma marginal, de modo que a população não dependa apenas da Via Dutra, mas até agora nada”, cita. Almeida lembra ainda dos 32 piscinões previstos para Guarulhos no Plano Diretor de Drenagem, lançado há dez anos pelo governo do Estado, que até o momento não saíram do papel. “O plano está sendo atualizado sem que nenhuma das obras tenha sido executada”, frisa o gestor.

Para universalizar o esgotamento em Guarulhos seriam necessários investimentos entre R$ 1,2 bilhão e R$ 1,5 bilhão, em estimativas feitas no ano passado. “Não dá para utilizar somente recursos de tarifa e do orçamento municipal”, calcula o superintendente do Saae de Guarulhos, ao criticar a postura omissa do governo estadual, que contribuiu para o acúmulo do passivo ambiental.
“Dependemos então da parceria com o governo federal, comprometido desde a gestão do presidente Lula e agora da presidenta Dilma com a melhora da qualidade de vida das pessoas que moram nas cidades, e é nelas que a realidade deve ser transformada”, salienta o prefeito Sebastião Almeida.

Segundo ele, o investimento em sustentabilidade não está restrito à construção de uma Estação de Tratamento de Esgoto (ETE). “Os investimentos em tratamento de esgoto, que não se resumem à construção de uma ETE, mas de uma rede subterrânea que permitirá que o esgoto chegue até uma estação para ser tratado e somente depois lançado ao rio, ajudam a resgatar a harmonia que as cidades precisam ter. Os córregos foram sendo escondidos como sinônimo de coisa feia. E tanto o governo Lula como agora o governo Dilma estão mostrando que o córrego não é feio, mas sim o que se joga dentro dele.”

Estação de Tratamento de Esgoto São João. Foto:| Luciney Martins

Abastecimento, coleta e tratamento de esgoto

Foram construídos em Guarulhos 413 quilômetros de redes e adutoras, doze centros de reservação de água (cinco dos quais com recursos do PAC), que garantem a reserva de mais 45 milhões de litros, além de 102.291 novas ligações em pouco mais de dez anos. Resultado: cerca de 97% da população é atendida com água potável. No início da década passada, a taxa era de 80%.

A coleta atinge, aproximadamente, 82% do município. Entre janeiro de 2001 e março de 2012 foram executados 436,96 quilômetros de redes (incluem-se aí redes coletoras, coletores-tronco, linhas de recalque e interceptores implantados pelo Programa de Tratamento, cujas obras são realizadas desde 2008) e 52.901 ligações de esgoto. Esse conjunto de obras fez a cidade sair de zero para 35% em capacidade total de tratamento de esgoto do município.

No final de maio, mais um passo foi dado, com as obras de complementação da ETE Várzea do Palácio, próxima à Rodovia Hélio Smidt. Terceira das cinco unidades próprias previstas no PDSE, que inclui sete subsistemas, a estação tem capacidade para tratar 15% do esgoto gerado na cidade.

Somada às duas outras ETEs – São João, em operação desde setembro de 2010, e Bonsucesso, desde dezembro de 2011 – e às obras em execução de coletores-tronco do sistema Cumbica-Pimentas (que permitirão conduzir esgotos até a ETE São Miguel, pertencente ao Sistema Metropolitano, operado pela Sabesp), a cidade chegará a 70% de sua capacidade de tratamento. Restarão, portanto, os subsistemas Cabuçu e Fortaleza, que respondem por apenas 3% dos esgotos gerados no município, e o subsistema Centro, cujo projeto está sendo detalhado. “Nossa meta é chegar aos 100% do tratamento”, destaca o prefeito petista.

Duas ruas acima da ETE São João, a casa de Agenor Motta guarda um poço artesiano desativado no fundo do quintal. Segundo o morador, há duas décadas a comunidade fazia fila em seu portão com baldes, para buscar água. “Começou a mudar essa situação no bairro há dez anos, com o governo Elói Pietá. A ETE veio para melhorar a questão do tratamento de esgoto e hoje tem água todos os dias”, diz o presidente da Associação de Moradores, abrindo a torneira do quintal.

Cerca de meio milhão de reais foram destinados, entre recursos próprios e do PAC, às intervenções do Programa de Tratamento de Esgoto de Guarulhos executadas há quatro anos. “A implantação de sistemas de tratamento de esgotos nas dimensões e nos prazos praticados pelo município de Guarulhos é uma experiência inédita e sem precedentes em termos estaduais ou nacional, cuja repercussão se estenderá muito além dos limites municipais e regionais, devido à grande extensão da poluição no canal do Rio Tietê”, completa o prefeito.

O reflexo de parte dessas mudanças, que contaram com o apoio e decisão da população em plenárias do Orçamento Participativo, já começa a ser visto nos indicadores do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS-2009), que aponta Guarulhos como o 11º município entre os 39 da RMSP que mais tratam esgoto e o quarto em coleta.

O esforço do município foi reconhecido em março passado pela Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), que aceitou projeto do Saae Guarulhos, em parceria com a prefeitura, para criar uma Unidade de Conservação Municipal de Proteção Integral de 69,90 hectares, ao norte da Serra da Cantareira.

Satisfeito, Almeida enfatiza que a população mais pobre é a principal beneficiária dos investimentos em saneamento, de programas como o Minha Casa, Minha Vida, responsáveis por transformar a fotografia da cidade. “Hoje o mérito que temos de uma cidade moderna é a continuidade do que o governo Elói Pietá deixou. Temos de ter sequencia, não se pode interromper o que está em andamento, porque é obra do povo”, adverte.

Cecília Figueiredo é jornalista