EM DEBATE

Segundo o 5º Relatório Nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, entre 1993 e 2011 ao menos 22,5 mil pessoas foram mortas em confronto com as polícias paulista e carioca. Desde as manifestações de junho de 2013, a atuação e o papel da PM vem sendo questionados. No Congresso a PEC 51, de autoria do senador Lindbergh Farias que visa reestruturar o modelo policial (civil e militar) brasileiro ganha relevância.

Segurança Pública com respeito aos direitos humanos

A polícia no Estado Democrático de Direito

Segurança Pública com respeito aos direitos humanos

Os abusos sistemáticos cometidos pela polícia contra a população são, hoje, um dos principais problemas a ser enfrentados no país em relação aos direitos humanos. A tortura utilizada como “método” de investigação, o encarceramento massivo de pessoas – o Brasil está na quarta posição mundial, com mais de 520 mil pessoas em situação de privação de liberdade – e  sobretudo as execuções cometidas por agentes do Estado configuram um quadro gravíssimo no que se refere à segurança pública e garantia de direitos básicos da população.

As execuções sumárias por parte de policiais militares ou grupos de extermínio são, sem dúvida, o aspecto mais crítico. De acordo com dados da Organização das Nações Unidas (ONU), a polícia brasileira está entre as que mais matam no mundo. Segundo o 5º Relatório Nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, entre 1993 e 2011 ao menos 22,5 mil pessoas foram mortas em confronto com as polícias paulista e carioca. Uma média de 1.185 por ano, ou três ao dia. O número inclui apenas os casos registrados como “auto de resistência”, aqueles nos quais o policial alega ter atirado em legítima defesa. Entre 1980 e 2010, 1.098.675 brasileiros foram assassinados. O país convive com cerca de 50 mil homicídios dolosos por ano. A maioria das vítimas é jovem, pobre, do sexo masculino e sobretudo negra. Desse volume, apenas 8%, em média, são investigados com sucesso, segundo o Mapa da Violência, organizado pelo professor Julio Waiselfisz, publicado em 2012.

Em meio às violências cometidas pela Polícia Militar no país, um debate que vem se fortalecendo na sociedade é a desmilitarização das polícias no Brasil. O cenário de violência tem chamado atenção de órgãos de direitos humanos internacionais. Em maio de 2012, a Dinamarca chegou a recomendar, na reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, que o Brasil extinguisse a PM. A temática também rendeu citação do Brasil em um levantamento feito pela Anistia Internacional. De acordo com a organização de direitos humanos, 80% dos brasileiros temem sofrer torturas caso sejam detidos, dado alarmante que aponta para uma desconfiança da sociedade acerca da polícia.

Uma das soluções apresentadas para reduzir a violência policial seria a unificação das Polícias Civil e Militar. A separação dessas forças e suas funções, porém, está prevista no Art. 144 da Constituição Federal. A proposta de desmilitarização consiste na mudança da Constituição, por meio de emenda constitucional, de forma que ambas constituam um único grupo policial e que todo ele tenha uma formação civil. A PM é força auxiliar do Exército, por isso é militar.

Uma das maiores críticas à militarização da polícia é em relação ao comportamento dos agentes do Estado, proveniente de uma mentalidade que enxerga o civil como um inimigo da sociedade e de um treinamento de combate a um inimigo externo. Unificar as duas polícias, acreditam defensores de direitos humanos, aumentaria a coordenação e eficiência na solução de crimes. Além disso, daria recursos extras para uma inteligência integrada, devido ao corte de despesas com a manutenção de duas estruturas.

A ideia da desmilitarização é defendida, inclusive, por parte dos policiais militares que são praças (soldados, cabos, sargentos e subtenentes), que compõem o grosso da tropas. Já os oficiais pensam o contrário.

Uma iniciativa importante para transformar o aparato policial no Brasil é a Proposta de Emenda Constitucional 51, que visa alterar a configuração atual das polícias e prevê a desvinculação entre a polícia e as Forças Armadas; a efetivação da carreira única (ciclo completo), com a integração entre delegados, agentes, polícia ostensiva, preventiva e investigativa; e a criação de um projeto único de polícia. A carreira única não significa, no entanto, a unificação das atividades policiais (ostensiva e investigativa), mas sim a construção de um novo modelo de polícia. A PEC 51 ainda insiste na busca por maior transparência e valorização dos policiais, pondo fim aos salários e planos de carreira diferentes que hoje separam policiais civis e militares. O projeto é de autoria do senador Lindbergh Farias (PT-RJ) — pré-candidato ao governo do estado do Rio de Janeiro — e contou com o auxílio do antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-secretário nacional de Segurança Pública.

Embora a desmilitarização não seja a única saída para o problema da segurança pública no Brasil, ela é, sim, fundamental e deve ser exigida. Com o fim da PM, podemos dar um importante passo rumo a uma política de segurança pública democrática e respeitadora dos direitos humanos.

Adriano Diogo é deputado estadual (PT), presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" e da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Alesp

A polícia no Estado Democrático de Direito

A desmilitarização das polícias é uma questão há muito abordada tanto por estudiosos, profissionais de segurança pública, juristas e pela sociedade civil brasileira como por órgãos da comunidade internacional. A partir das manifestações de junho de 2013, no entanto, tornou-se um dos temas centrais em debate, e a discussão tomou corpo no Congresso Nacional com a apresentação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 51/2013, de autoria do senador Lindbergh Farias (PT-RJ).

De acordo com o Art. 144 da Constitucional Federal, no âmbito estadual existem duas polícias: a civil, de atividade investigativa e preventiva, e a militar, de atividade ostensiva e repressiva. É exatamente esse modelo policial (civil e militar) de segurança pública que a PEC 51 visa reestruturar.

Ditadura militar

A partir de 1964, a Polícia Militar foi amplamente utilizada pelo governo golpista como meio de repressão e controle da população que protestava contra o regime ditatorial. Não se há de esquecer que o Serviço Nacional de Informações (SNI), antecessor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), e muitos agentes da Polícia Civil, em conluio com agentes da norte-americana CIA, efetuaram diversas ações que configuram crimes contra a humanidade, no intuito de prolongar o Estado de exceção. Segundo diversos relatos, inclusive de agentes da ditadura, a exemplo do ex-delegado Claudio Guerra, era assim que o regime militar atuava contra a resistência da esquerda brasileira, ou mesmo contra quem era de alguma forma contrário a ele: prisões, torturas, desaparecimentos e mortes.

No estado de São Paulo, por exemplo, a Força Pública e a Guarda Civil foram extintas para a criação da Polícia Militar, com a Doutrina de Segurança Nacional importada para dentro de seus quartéis. Desenvolvida na Escola Superior de Guerra, subordinada ao Estado-Maior das Forças Armadas e estruturada conforme a National War College do EUA, essa doutrina teve entre seus idealizadores os generais Humberto de Castelo Branco e Golbery do Couto e Silva, criador do SNI.

De concepção de defesa nacional, seu objetivo era identificar e eliminar os inimigos internos, ou seja, aqueles que se opunham ao governo golpista. No entanto, mesmo após a abertura política e o fim do regime ditatorial, esses reflexos continuam a ser preconizados no interior dos quartéis das PMs.

Entre as origens da violência policial, portanto, está a doutrina ultrapassada, advinda de uma época em que a disputa pela hegemonia mundial (Guerra Fria) não poupou a democracia dos países latino-americanos e os direitos fundamentais de seus habitantes. Uma violência que protagonizou e ainda protagoniza diversos fatos da história recente de nosso país, desde assassinatos por parte de grupos de extermínio nas periferias de São Paulo e outras cidades do Brasil, o Massacre do Carandiru, em 1992, até o desaparecimento de Amarildo de Souza, morador da comunidade da Rocinha, no Rio de Janeiro, em uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), cuja função principal é o policiamento comunitário.

Hoje, em pleno Estado Democrático de Direito, a estrutura da PM se iguala à do Exército, e essa relação não termina aí. Apesar de serem de responsabilidade das unidades da Federação, as PMs possuem um órgão fiscalizador ligado ao Exército, a Inspetoria-Geral das Polícias Militares (IGPM), e um órgão julgador próprio, os Tribunais Militares Estaduais. A existência destes é prevista no Art. 125 da Constituição para os estados que tenham efetivo superior a 20 mil integrantes. No entanto, apenas três o possuem ­– São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul –, e conforme o Conselho Nacional de Justiça custam ao erário R$ 100 milhões por ano.

Segundo o ex-secretário nacional de Segurança Pública Luiz Eduardo Soares, polícias são instituições destinadas a garantias de direitos e liberdade dos cidadãos, nada têm a ver com o Exército, que atende a sua missão constitucional, tornando possível o pronto emprego, qualidade essencial às ações bélicas destinadas à defesa nacional. A desmilitarização da PM foi defendida inclusive pela maioria dos 64.130 servidores – entre policiais civis, militares e federais, policiais rodoviários, peritos, agentes penitenciários e guardas municipais – entrevistados na consulta “O que pensam os profissionais de segurança pública no Brasil”, realizada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), em parceria com o Programa das Nações Unidades para o Desenvolvimento (PNUD).

Tribunais militares

Em audiência realizada em novembro de 2012, o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Joaquim Barbosa, propôs instituir um grupo de trabalho, sugerido pelo então conselheiro Bruno Dantas, para avaliar a Justiça Militar no âmbito estadual e federal e a possibilidade de extinção dos Tribunais Militares do Rio Grande do Sul, de São Paulo e Minas Gerais e do Superior Tribunal Militar. Os motivos para essa decisão, os gastos exorbitantes e a morosidade na apuração dos processos, como foi o caso do Tribunal Militar do Estado de Minas Gerais, onde 82% deles prescreveram.

No ano de 2008, por exemplo, o CNJ identificara diversos problemas no TJM do Rio Grande do Sul, apontados pela Portaria de Inspeção nº 89/2008: nepotismo, falta de transparência, morosidade, censura pública à magistratura – caracterizando falta de independência dos juízes de primeiro grau da Justiça Militar, em ato atentatório por parte do tribunal –, cargos em comissão ocupados por servidores sem vínculo com a administração pública, desvio de função, salários acima do teto constitucional, atuação (falta de) da Corregedoria.

O grupo de trabalho foi constituído em 17 de abril de 2013, por meio da Portaria nº 60 do CNJ, e de lá para cá foram realizados levantamentos de dados dos tribunais, uma oficina de discussão em fevereiro de 2014 e a solicitação da prorrogação do prazo dos trabalhos, com previsão de votação das propostas para a Justiça Militar a partir de agosto de 2014. De acordo com o então conselheiro do Bruno Dantas, os gastos do Tribunal de Justiça Militar (TJM) de São Paulo são os mais elevados – R$ 40 milhões por ano. Já os de Minas Gerais e Rio Grande do Sul custam em torno de R$ 30 milhões cada um, ou seja, uma quantia elevada para o julgamento de poucos processos. Juntos, ambos somavam 4 mil, no final de 2011, enquanto o número de processos pendentes no Poder Judiciário supera os 60 milhões.

Comunidade nacional e internacional

Em 2012, o Exame Periódico Universal do Conselho de Direitos Humanos da ONU recomendou a desmilitarização da polícia no Brasil.

Já no ano de 2013, durante o 7º Encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foi redigida a Carta de Cuiabá, com recomendações para o aprimoramento da segurança pública em nível nacional, entre as quais a reestrutura do atual modelo de segurança pública:

“Reforma do modelo atual de organização policial, com a gradativa adoção de instituições policiais de ciclo completo nos estados, a desmilitarização da natureza e da organização policial no país, a garantia de autonomia funcional e operacional para os órgãos periciais e a consolidação legal das atribuições das guardas municipais como parte do sistema, atuando na manutenção da segurança urbana, na mediação de conflitos e no suporte ao policiamento de proximidade e comunitário”.

Conclusão

Não existem pontos negativos com relação à desmilitarização da PM. Esse processo passa pelo rompimento do cordão umbilical que ainda a liga ao Exército – por meio da Inspetoria-Geral das Polícias Militares, com o fim desta –, deixando de ser tropa auxiliar. Os altos gastos e os demais problemas apresentados pelos TJMs estaduais, como ficou comprovado, não justifica a permanência dessas instituições, como ficou comprovado, e toda a sua estrutura, uma vez extintos, migraria para os Tribunais de Justiça dos estados.

Esse rompimento já faz parte de um todo do processo, pois seria o fim da continuidade de uma doutrina imposta nos anos de chumbo, assim como o investimento na reestrutura das academias de formação, a valorização do policial, bem como a aprovação da PEC 51/2013. Tais ações seriam de suma importância para que, finalmente, a reforma do atual modelo de organização policial no Brasil entrasse em sintonia com os tempos de um Estado Democrático de Direito.

Referências

GUERRA Claudio, NETTO Marcelo, MEDEIROS Rogério. Memórias de Uma Guerra Suja. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012

PRIORI, Angelo. “A Doutrina de Segurança Nacional e o Manto dos Atos Institucionais Durante a Ditadura Militar Brasileira”. Revista Espaço Acadêmico nº 35, Abril de 2004

SOARES, Luiz Eduardo. “Arquitetura Institucional da Segurança Pública no Brasil: Três Propostas de Reforma Constitucional”. Site http://www.luizeduardosoares.com/?p=997, acessado em 10 de julho de 2014

Abdael Ambruster é especialista em Criminalística, com ênfase em Perícia Forense, pelo Instituto Keynes/UNG-SP. Tecnólogo em Gestão de Segurança Patrimonial pela Uniban-SP, integra o Setorial Estadual de Segurança Pública do PT/SP e coordena o Setorial Regional (PT Freguesia do Ó/Brasilândia) de Segurança Pública. Especializando em Direitos Humanos e Segurança Pública pela Senasp/Acadepol-SP

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