Nacional

A crise da indústria bélica brasileira demonstra que o modelo que a viabilizou está superado. Os trabalhadores do setor procuram desenvolver um caminho de reconversão e diversificação.

É comum se dizer que o regime militar brasileiro contemplou os interesses do grande capital nacional e do estrangeiro. No entanto, é muito difícil encontrar uma análise que procure demonstrar como e por que as Forças Armadas (FFAA) também governaram em causa própria, ou seja, executando o "seu projeto político". Há mais de um século as FFAA têm exercido um papel decisivo na política nacional, desde as várias intervenções diretas nos destinos do poder de Estado, até formulações de políticas de desenvolvimento científico, tecnológico e industrial que estariam vinculadas às suas opções estratégicas e de expressão do poder nacional/militar no cenário internacional.

Estas características, acabaram por constituí-las como um verdadeiro Estado dentro do Estado, dotadas de autonomia de decisões em um amplo leque de questões que extrapolam, em muito, as que seriam do campo militar.

Desde a fundação da Escola Superior de Guerra (ESG), em 1949, seus principais ideólogos, entre eles, os generais Golbery do Couto e Silva e Carlos de Meira Mattos, concentraram-se em formular projeções estratégicas e teorias geopolíticas que fossem capazes de alçar o Brasil à condição de potência mundial. Com o golpe de Estado de 1964, as FFAA somaram condições quase absolutas para implementar o seu projeto de "Brasil potência".

No imaginário militar, a potência seria reconhecida a partir da conquista da autonomia tecnológico-industrial nas áreas que pudessem proporcionar às FFAA uma ampla margem de defesa, ataque, prospeção e promoção dos interesses nacionais por terra, mar e ar. É para este sentido que apontam vários trabalhos escritos pelos alunos e estagiários da ESG, nas últimas três décadas. Foi nesta direção que atuou o regime militar, através de ampla mobilização de recursos pluriarticulados e das várias frentes de intervenção possíveis a partir do controle do Estado.

Alguns pesquisadores estrangeiros consideram "natural" a formação de um complexo industrial-militar em sociedades que atinjam determinado grau de industrialização e desenvolvimento tecnológico. No caso brasileiro, tal desenvolvimento, necessário para garantir a autonomia tecnológica e estratégica das FFAA, foi minimamente atingido através de um planejamento e mobilização de recursos destinados para este fim. Pois, as áreas integrantes, direta ou indiretamente, do complexo industrial-militar brasileiro foram instituídas ou amplamente impulsionadas durante a intervenção estatal-militar nos rumos do desenvolvimento econômico brasileiro.

Assim surgiu a "moderna" indústria bélica brasileira, a política nacional de informática, a indústria aeronáutica, o programa nuclear e a missão espacial completa, entre outras "prioridades" dos últimos 26 anos, sempre de acordo com o binômio da ESG de "desenvolvimento e segurança nacional".

Em 1965, foi criado o Grupo Permanente de Mobilização Industrial (GPMI), a partir de uma articulação entre as FFAA e a Fiesp, surgida no período de preparação do "golpe de 64", no interior do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), centro da conspiração da elite civil-militar. Esta integração de militares e empresários visava criar um complexo nacional de pesquisas, desenvolvimento e produção de equipamentos militares com o objetivo de substituir as importações e, quem sabe, propiciar a entrada do país no milionário comércio mundial de armamentos.

A partir do patamar tecnológico-produtivo já instalado, se tentaria aproveitar a capacidade ociosa das indústrias em crise, além da direta conversão daquelas que produziam bens civis, para iniciarem a produção de material bélico. Assim, várias empresas como Vigorelli, General Eletric, Bernardini, Singer, Engesa e Avibrás, que originalmente eram voltadas para o mercado civil, passaram a produzir equipamentos militares. Algumas converteram apenas uma pequena parte de sua produção, outras se transformariam nas maiores produtoras e exportadoras de armamentos do país.

Além do setor privado, a mobilização levou um forte incremento a alguns institutos de pesquisas e à criação de outros com missões militares específicas. Assim aconteceu com o Centro Tecnológico da Aeronáutica (CTA), Instituto Militar de Engenharia, Instituto de Pesquisas da Marinha (IPqM), Instituto de Pesquisas Espaciais (lnpe), Centro Tecnológico do Exército, Centro de Análises de Sistemas Navais (Casnav), Coordenadoria de Projetos Especiais (Copesp). Houve também contribuições de institutos civis e de setores de algumas universidades.

Estes institutos se responsabilizaram pela formação de recursos humanos (técnicos e engenheiros) e pela pesquisa e desenvolvimento de projetos, que depois eram repassados às indústrias. Além dos orçamentos próprios, a maior parte dos recursos, para promover tantas atividades em áreas diferentes, eram captados em fontes como: Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e, até mesmo, Capes e CNPQ. Estes recursos, eram também repassados diretamente às empresas. Avibrás, Engesa, Embraer e Imbel foram muitas vezes financiadas pelas agências governamentais.

Os beneficios às empresas também ocorreram através de incentivos e isenções fiscais, tais como o decreto-lei que isentava as empresas produtoras de armamentos do pagamento de impostos sobre importação de matérias-primas e equipamentos necessários às suas atividades, o desconto de 1 % do imposto de renda para as empresas privadas que comprassem ações da Embraer e o imposto de 50% sobre as importações de aviões (que representou uma reserva de mercado para a Embraer).

A Embraer e a Imbel, criadas em 1969 e 1975 pelos ministérios da Aeronáutica e Exército respectivamente, são outros dois importantes exemplos do empenho das FFAA de, inclusive, participarem diretamente da produção de seus equipamentos. Foi justamente neste período, que as FFAA brasileiras obtiveram o seu índice de participação no orçamento da União.

Com todas estas iniciativas e incentivos, a indústria bélica brasileira conheceu um crescimento inédito e diversificado, com equipamentos voltados para o uso de forças aéreas e terrestres. O passo seguinte do regime militar foi o de conquistar um espaço no mercado mundial de armamentos, como forma de proporcionar uma produção em escala da indústria bélica nacional e garantir a sua viabilidade.

Em 1973, foi criado um programa especialmente destinado à exportação de armamentos: o Programa Nacional de Exportação de Material de Emprego Militar (PNEMEM), controlado diretamente pela Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional (CSN) e pelo Ministério das Relações Exteriores. Assim, o governo militar controlaria as exportações visando, também, o desenvolvimento de relações políticas e militares com os países compradores, principalmente na África, Oriente Médio e América Latina, esboçando-se a tentativa de uma "potência média" exercer alguma influência em outras regiões do Terceiro Mundo.

Esse é o modelo da indústria bélica brasileira, ou seja, o Estado cria incentivos ao setor privado, concede linhas de financiamento, participa em uma parte significativa da pesquisa e desenvolvimento de produtos e cria uma política de exportações para a viabilização econômica do setor. Dessa forma é que despontaram as três principais empresas brasileiras de armamentos: Engesa, que fabrica carros de combate sobre lagartas e rodas (Urutu, Cascavel, Osório), em várias versões; Avibrás, que produz mísseis e sistemas lançadores de mísseis (Astros II) e a Embraer, produtora de aviões civis e militares de vários modelos (Tucano, Xavante, AMX).

Esse modelo não foi o único responsável pelo período de "sucesso" da indústria brasileira de armamentos. Outra questão favoreceu seu desenvolvimento: a grande sofisticação dos armamentos no mercado internacional, controlado pelos tradicionais produtores, que inviabilizava, para os países do Terceiro Mundo, sua importação e utilização. E foi justamente para esta fatia de mercado que o Brasil se colocou como exportador de armamentos. A indústria bélica brasileira constituiu-se num contra-exemplo da tendência mundial desse mercado, em crise durante, praticamente, toda a década de 80, transformando-se num dos principais exportadores de armas para o Terceiro Mundo. Ou seja, o Brasil desenvolveu uma tecnologia média, de baixo custo, com mão-de-obra barata e com direta participação do Estado, oferecendo seus produtos para países que necessitavam de armamentos pouco sofisticados, de fácil manutenção e a preços acessíveis.

Segundo os dados oficiais da Cacex, o grande volume de exportações brasileiras voltou-se basicamente para o Iraque, Arábia Saudita, Catar, Jordânia, Líbia, Angola e, em menor proporção, para alguns países da América Latina, geralmente regiões de tensões políticas e fronteiriças.

Com o término da guerra Irã/lraque e a diminuição dos conflitos nas fronteiras de Angola, a indústria bélica brasileira, mergulhou numa profunda crise, reduzindo quase que totalmente as suas vendas internacionais. O fim das exportações coincidiu com a profunda crise financeira do Estado brasileiro, onde começou a haver resistências para conceder financiamentos indiscriminados para as empresas. O próprio BNDE chegou a negar-se a continuar concedendo empréstimos devido à "saúde financeira e falta de perspectivas do setor".

Por outro lado, existem várias críticas ao empresariado do setor, principalmente ao mau gerenciamento e aplicação dos recursos, nos casos da Engesa e Avibrás que sempre procuraram expandir suas atividades para diferentes ramos do setor bélico, comprando algumas empresas, associando-se a outras, tentando sofisticar seus equipamentos etc., sem dar muita atenção às tendências do mercado mundial e, sempre, acostumadas com os gordos "auxílios" do Estado ou dos ministérios militares, fontes que, aparentemente, também secaram.

Em março de 1991, São José dos Campos - onde a Engesa, Avibrás e Embraer estão instaladas - apresentava um índice de desemprego 2,13 vezes superior à média do estado de São Paulo, indicando o peso da crise da indústria bélica na região.

Perspectivas do setor

A guerra no Golfo Pérsico trouxe novos complicantes para as empresas brasileiras que exportavam para a região. Em primeiro lugar devido à consolidação da presença norte-americana em alguns países do Oriente Médio, principalmente na Arábia Saudita, que já foi um grande importador dos produtos brasileiros. Em 1988/89, os Estados Unidos fizeram grande pressão política para os sauditas comprarem um grande lote de um carro de combate norte-americano, mesmo depois de ter perdido a concorrência para o brasileiro ET-1 Osório, fabricado pela Engesa. Diante das pressões políticas, que na época envolveram até o então vice-presidente George Bush, os sauditas escolheram o produto norte-americano, mesmo derrotado na concorrência.

Agora, é de se esperar que grande parte do mercado árabe fique em mãos norte-americanas, diminuindo ainda mais as chances das empresas brasileiras de retomarem suas exportações para aquela região. Por outro lado, a guerra em si colocou novos parâmetros para a readequação das Forças Armadas do mundo inteiro. Isto significa que inúmeros países, provavelmente, tentarão comprar ou desenvolver artefatos militares balizados pela guerra do Golfo, cujas características e padrão tecnológicos estão muito distantes do potencial brasileiro.

A crise da indústria bélica brasileira demonstrou que o próprio modelo que a viabilizou está superado. Em primeiro lugar devido à incapacidade do Estado brasileiro retomar os mesmos níveis de investimento para o setor. Segundo devido às dificuldades de colocação no mercado internacional. E terceiro devido às impossibilidades do próprio setor privado tentar insistir neste ramo de produção, cuja perspectiva é de muita instabilidade na atual conjuntura. Por último, setores das próprias FFAA parecem estar mais interessados nas perspectivas do programa nuclear autônomo e, no máximo, no setor aeronáutico e espacial.

Diante deste quadro, já há sinais dos empresários do setor no sentido de mudarem de atividade. O presidente da Avibrás declarou estar investindo na diversificação de sua produção para o setor civil, principalmente no ramo das telecomunicações, proposta que já levantada pelo Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de São José dos Campos, assim que a crise se esboçou, no início de 1988, e que foi ironizada e qualificada de "ingênua" pelos próprios empresários.

Os trabalhadores e a indústria

Em 1987, o Sindicato de São José dos Campos iniciou um conjunto de atividades com o objetivo de compreender melhor o setor bélico, formular uma política e uma pauta de reivindicações específicas para os trabalhadores do setor e procurar sensibilizar a sociedade civil sobre as desventuras das indústrias de armamentos. Os trabalhadores vivem a seguinte contradição: são contrários às guerras, acreditam na possibilidade de resolução pacífica dos conflitos internacionais e, ao mesmo tempo, produzem armamentos.

Neste sentido, procuraram desenvolver uma política que apontasse o caminho da diversificação e reconversão da indústria bélica para o setor civil. Primeiro, para que se evite a existência de empresas especializadas exclusivamente na produção de armamentos, o que as tornam dependentes dos conflitos armados, do intrigante e pouco transparente comércio de armamentos, entre tantas outras obscuras questões que caracterizam este ramo da produção. Em segundo, para que sua viabilidade econômica seja garantida pelo mercado civil, produzindo bens úteis ao conjunto da sociedade. Em terceiro lugar porque as empresas muito militarizadas dificultam bastante a ação sindical, assumindo características autoritárias e repressoras, sempre em nome do "sigilo" e da "segurança nacional". Por último, devido à pequena geração de empregos no setor bélico comparativamente a outros setores de maior sentido social.

Recentemente, entre 4 e 8 de abril de 1991, o Departamento Nacional dos Metalúrgicos da CUT (DNM/CUT), promoveu um Encontro com Sindicatos de vários estados do país, representando trabalhadores ligados à produção de armas leves, munições, armamentos pesados convencionais e, também, trabalhadores ligados ao setor nuclear, para construir uma política para o setor sob a ótica de seus trabalhadores, onde, entre outras questões, foram reafirmadas as posições em defesa da diversificação e reconversão da indústria bélica.

O mais interessante, nesta postura que os sindicatos ligados ao DNM/CUT vêm assumindo, é a própria ruptura com o corporativismo, muito diferente, da maior parte do sindicalismo norte-americano, que é considerado parte integrante e importante ponto de apoio do complexo industrial-militar dos EUA. No lugar da defesa cega do emprego e da manutenção do setor, os trabalhadores brasileiros questionam a sua posição, requalificam o papel do trabalho, buscam uma alternativa de produção, ao mesmo tempo que procuram construir uma política de alianças com a sociedade civil e com importantes setores do movimento sindical internacional.

Neste sentido, o DNM/CUT já tem em sua agenda a realização do II Encontro Brasil/Itália, um Encontro Sindical Internacional sobre a Reconversão da Indústria Bélica, no Canadá e a perspectiva de se qualificar para os debates que ocorrerão em junho de 1992, no Rio de Janeiro, durante a Conferência da Sociedade Civil que acontecerá simultaneamente à Conferência Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento promovida pela ONU.

Além de terem sido os primeiros a chamar a atenção sobre a instabilidade econômica daquelas indústrias, o sindicato tem assumido uma postura propositiva, procurando intervir no processo de construção de novas alternativas para o setor, em que possa ser aproveitado o seu potencial tecnológico e produtivo. Sua atitude não se restringe apenas ao questionamento do modelo da indústria bélica brasileira, mas a todo o modelo de desenvolvimento Mundial, que gasta cerca de um trilhão de dólares anuais com armamentos.

Maurício Broinizi Pereira é membro do Diretório Zonal da Lapa/SP, assessor do CEDI, pós-graduando em História/USP e pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp