Mundo do Trabalho

A greve nacional das Instituições Federais de Ensino Superior, iniciada em maio de 2012, recoloca na agenda política o debate sobre a reforma universitária

A expansão do ensino superior brasileiro representa o avanço concreto em termos de ampliação das oportunidades de acesso à universidade, mas apresenta sérias fragilidades no que se refere à garantia das condições necessárias para o desenvolvimento das atividades de ensino, extensão e pesquisa nas universidades federais, uma delas é a ausência de uma política de valorização da carreira docente

Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes) em greve nacional desde 17 de ma

Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes) estão em greve nacional desde 17 de maio. Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr

A greve nacional das Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes), iniciada em 17 de maio de 2012, recolocou na agenda política brasileira o debate sobre a reforma universitária. O movimento evidenciou, sobretudo, as vicissitudes do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), maior projeto de democratização das oportunidades de acesso ao ensino superior da história do país.

Em termos conceituais, o principal desafio do Reuni é romper com a lógica excludente e dicotômica da divisão social do trabalho nas universidades brasileiras, a qual opõe como inconciliáveis os desafios relacionados à qualidade do ensino e a quantidade dos estudantes. Historicamente, esse desafio foi enfrentado de forma dual: as instituições públicas ficaram responsáveis pelo desafio da qualidade e as instituições privadas pelo desafio da quantidade. Grosso modo, as primeiras são responsáveis pela formação da elite intelectual e científica e as últimas pela formação da mão de obra técnica e profissional. O Reuni rompe com essa lógica excludente ao assumir o pressuposto da possibilidade de conciliar qualidade e quantidade no ensino público superior federal.

Instituído pelo Decreto no 6.096, de 24 de abril de 2007, como parte do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), o programa contempla um conjunto de ações que têm como meta o aumento das vagas nas universidades públicas, a ampliação dos cursos noturnos, a promoção de inovações pedagógicas, o combate à evasão e o incentivo à permanência no ensino superior. Nessa perspectiva.

Uma nova realidade

Em menos de uma década, o número de universidades federais saltou de 45 para 59, um crescimento de 30%. Entre 2003 e 2011, o total de municípios atendidos por essas instituições mais do que dobrou, passando de 114 para 237. Nesse mesmo período foram criados mais de cem novos campi universitários em todo o país. Uma revolução copérnica que mudou o eixo gravitacional do ensino público brasileiro, até então centrado nos interesses científicos e intelectuais da elite branca, de classe média, oriunda dos colégios particulares de diferentes regiões do país (ver gráfico abaixo).

Expansão da rede federal de ensino superior

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Ilustração: Casa de Cultura Digital

A expansão do ensino superior brasileiro se destacou ainda pela inclusão qualitativa de setores historicamente excluídos da sociedade, como é o caso dos jovens indígenas e negros. A Universidade Federal do ABC (UFABC) é um caso paradigmático. Metade das vagas da instituição é reservada para egressos de escolas públicas, das quais 35% para negros e 0,1% para indígenas. Atualmente, a UFABC conta com mais de 5.500 estudantes de graduação, dos quais 1.700 (30%) são beneficiários de bolsas socioeconômicas e/ou acadêmicas.

Não obstante as resistências iniciais, o Reuni foi fundamentalmente sustentando pelo compromisso de alunos, técnicos administrativos e professores com as metas iniciais do programa. Sem o empenho e o envolvimento desses atores, o Reuni seria apenas mais uma declaração de intenções sem impacto social efetivo; como ocorre com o próprio Plano Nacional de Educação (PNE), repleto de metas não atingidas.

Como não poderia deixar de ser, o processo de expansão e reestruturação do ensino superior brasileiro recebeu o apoio crítico dos professores das Ifes. Se por um lado representava o avanço concreto em termos de ampliação das oportunidades de acesso à universidade, por outro apresentou sérias fragilidades no que se refere à garantia das condições necessárias para o desenvolvimento das atividades de ensino, extensão e pesquisa nas universidades federais. A própria ausência de uma política efetiva de valorização da carreira docente é uma delas.

Conflito

Muito embora tenha havido uma incipiente política de recuperação salarial e de reestruturação da carreira no início do processo de implantação do Reuni, nos últimos anos do governo Lula e nos primeiros do governo Dilma a política salarial para os servidores das universidades federais esteve subordinada às metas seletivas e restritivas da política orçamentária nacional, a qual privilegiou algumas carreiras do Estado em detrimento de outras, mesmo em áreas em que a qualificação profissional é semelhante.

Esse quadro fica evidente quando comparamos a evolução do salário inicial (bruto) dos professores doutores alocados no Ministério da Educação (MEC) com a de servidores públicos com responsabilidades análogas, como é o caso dos pesquisadores doutores do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Em 1998, no final do primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso, declaradamente contrário à expansão do ensino público federal, os professores universitários recebiam R$ 3.388,31; os pesquisadores do Ipea, R$ 3.128,20; e os do MCT, R$ 2.662,36. O maior salário das três carreiras, portanto. Em 2012, os pesquisadores doutores do Ipea recebem R$ 12.960,77; os dos MCT, R$ 10.350,67; e os professores doutores do MEC, R$ 7.333,67 (ver gráfico abaixo).

Gráfico comparativo da evolução do salário inicial (bruto) dos professores doutores do MEC e pesquisadores doutores do MCT e do Ipea

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Ilustração: Casa de Cultura Digital

Greve sem diálogo

O acordo assinado com as entidades sindicais docentes em 2011 previa basicamente duas coisas: reajuste emergencial de 4%, diante de uma inflação acumulada de mais de 10%, e reestruturação do plano de carreira e salários até 31 de março de 2012. O governo esperou até maio de 2012 para finalmente enviar uma Medida Provisória (MP) que garantisse o reajuste de 4%, com parte da categoria já em greve em função do não cumprimento do acordo inicial.

Na sequência, perdeu credibilidade na condução das negociações, com reuniões marcadas e desmarcadas. Em um primeiro momento, difundiu na mídia que faria uma proposta com potencial para terminar a greve até o final de junho. Passado esse período, a tônica voltou a ser de que o impasse seria resolvido até o final de agosto, quando, por força da lei, o governo deverá encaminhar a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) ao Congresso Nacional. Na ocasião, o secretário de Tesouro Nacional, Arno Augustin, chegou a comentar, em entrevista ao jornal Valor Econômico, que esse procedimento daria “um bom sinal para o mercado”.

Àquela altura, sem interlocução e sinalização de negociação, o movimento já havia alcançado quase todas as universidades federais, com mais de 1 milhão de alunos, dando margem a uma desmoralização do que até recentemente era uma das marcas do governo Lula e do currículo de Fernando Haddad. No início de julho, para tornar a situação ainda mais tensa, o Ministério do Planejamento anunciou o “corte de ponto” dos grevistas.

Pressionado pelo movimento e logo após uma série de manifestações que envolviam diretamente a presidenta Dilma (“Negocia, Dilma!”), o governo reabriu as negociações, na sexta-feira 13 de julho, de forma improvisada, limitando-se a uma discussão sobre reposição salarial parcial, sem dialogar com a pauta principal da reestruturação da carreira e os problemas de infraestrutura que prejudicam o funcionamento adequado em um número expressivo das universidades. E ainda sem abrir negociação com os técnicos administrativos. Além do mais, introduziu uma série de pontos inaceitáveis, como aumento da carga didática em 50%, o que prejudicaria o tempo disponível para as atividades de extensão e pesquisa.

Em seguida, iniciou uma campanha midiática que só poderia provocar indignação na categoria, ao divulgar que os professores teriam ganhos salariais de até 45%, sem considerar a projeção da inflação para o período 2012-2015. Diante da rejeição pelas assembleias de base, reapresentou essencialmente a mesma proposta, aumentando o comprometimento orçamentário total de R$ 3,9 bilhões para R$ 4,2 bilhões. A título de comparação, naquele mês o governo sancionou uma lei que perdoa 90% dos R$ 15,7 bilhões das dívidas das faculdades particulares com a União, em troca de uma nova ampliação do Programa Universidade para Todos (Prouni). Naquele momento, já estava claro que o governo Dilma havia se pautado pela lógica da contabilidade de curto prazo, em detrimento da aliança de longo prazo que sustentou a expansão e a reestruturação do ensino superior brasileiro nos dois mandatos do governo Lula.

O desgaste imposto aos professores, estudantes e técnicos administrativos, em um dos maiores movimentos grevistas da recente história da universidade brasileira, representa um retrocesso no processo de democratização do ensino superior. Significa, no interior das universidades, o enfraquecimento daqueles que efetivamente respaldaram o processo de reestruturação e o fortalecimento daqueles que associaram a expansão à perda da qualidade de ensino, à precarização das relações de trabalho e ao colapso administrativo das universidades.

Oxalá as “dores do parto” mencionadas pelo ministro Aloizio Mercadante, em entrevista recente à revista Veja, possam ainda dar à luz um novo compromisso pela expansão da universidade pública, gratuita e de qualidade para todos. Parafraseando o próprio ministro, em entrevista concedida à mesma revista há quase trinta anos, quando era um dos principais líderes do movimento grevista de 1984: “É para manter esse sonho que estamos em greve”.

Sidney Jard da Silva e Giorgio Romano Schutte são professores da Universidade Federal do ABC (UFABC)