Economia

Porque a crise brasileira é profunda demais para ser resolvida por uma equipe de economistas. Não há soluções técnicas que dêem conta dos problemas estruturais da economia nacional. O caminho menos traumático e mais seguro para o fim do impasse é o da negociação ampla e, quem diria, irrestrita.

Fazer uma avaliação do Plano Collor é, a um só tempo, muito fácil e muito difícil. Fácil porque as dificuldades do plano são óbvias: a inflação já está em dois dígitos, a economia voltou a indexar-se rapidamente, o processo de dolarização ampliou-se, a política salarial proposta é inaceitável, as promessas de reforma administrativa quase não saíram do papel, o problema do déficit público continua insolúvel, o problema cambial já é perceptível, enfim, retomamos (se é que chegamos a sair) a uma situação de extrema instabilidade da economia, com o país novamente correndo o risco de entrar em um processo hiperinflacionário. O difícil é entender o porquê do fracasso e traçar algum cenário para o futuro.

Por que o plano não deu certo? O diagnóstico era incorreto? As medidas eram ruins, ou eram insuficientes? A equipe era inexperiente? Houve boicote de alguns setores prejudicados? A "culpa" é dos trabalhadores ou dos empresários?

Poderíamos fazer aqui uma análise do plano, avaliar seu diagnóstico sobre o processo inflacionário, sua consistência interna, seus percalços de implementação. Entretanto, acredito que a discussão deva ser deslocada e o problema visto de um outro ângulo.

Planos do gênero Cruzado, Bresser, Verão e Collor são coerentes com um determinado tipo de concepção de política econômica que é resultado de uma certa compreensão do atual quadro brasileiro e do funcionamento da sociedade em geral.

Isto não significa que todos esses planos são iguais, que não tenham diferenças fundamentais de diagnósticos e terapêutica, e especificidades "técnicas" que os diferenciem em profundidade. A análise aqui é outra. Parto da dúvida quanto à possibilidade de uma equipe econômica de quatro, cinco ou dez economistas: os mais brilhantes do mundo: do PRN, do PT, do PSDB ou de qualquer outro partido: trancada num quarto de hotel ou num gabinete qualquer: fazer um "plano", qualquer "plano", que dê conta da dramática crise brasileira.

Sempre me lembro do Garrincha, que, segundo contam, depois de ouvir atentamente seu treinador descrever uma jogada genial, que terminaria com um belo gol, perguntou ao técnico se ele já havia combinado tudo com o time adversário.

Fazer um "plano" trancado entre quatro paredes tem o mesmo sentido. O "plano" pode ser genial, ter medidas corretas, corajosas e nem por isso vai dar certo. Pensar que existe saída para a crise brasileira neste caminho é não entender a própria crise, sua origem e seus desdobramentos. Coragem. honestidade e competência são condições necessárias, porém insuficientes. Estar do lado dos trabalhadores também não garante nada de antemão.

Não tenhamos ilusões. Soluções voluntaristas, venham de que lado vierem, não só não têm conseguido estabilizar a economia, como, muito pelo contrário, aprofundaram os desequilíbrios, aumentaram a instabilidade e, o que é pior, tornaram a possibilidade de um processo hiperinflacionário ainda mais próxima.

Os quatro planos implementados levaram a um aprendizado dos mais diferentes setores da sociedade que, embora de maneira diversa, desenvolveram mecanismos de defesa contra a inflação e contra a ameaça de novos planos.

Cada plano, em maior ou menor magnitude, contribuiu para a quebra de confiança nas instituições e, mais do que tudo, na moeda. A fuga para mercadorias ou para o dólar vem generalizando-se, assim como a busca de mecanismos de indexação cada vez mais eficientes. A estrutura de preços relativos da economia está de pernas para o ar, fazendo com que qualquer nova tentativa de congelamento esteja fadada ao fracasso. O nível de desalinhamento é tal que sempre serão necessárias correções, que implicarão pressões inabsolvíveis pela cadeia produtiva.

A atual crise brasileira é, sem menor dúvida, a maior de nossa história. O que está sendo questionado é o modelo de crescimento que o país vem seguindo desde os anos 30. De fato, o Brasil cresceu. Porém, às custas do acúmulo de uma dívida externa e uma dívida interna nas mãos do Estado que, devido à magnitude e à complexidade que atingiram, agora comprometem a possibilidade de o país continuar crescendo.

Nos últimos sessenta anos o Estado liderou o processo de desenvolvimento, utilizando-se dos mais variados mecanismos de transferência de recursos para o setor privado: créditos subsidiados, incentivos e isenções fiscais, reservas de mercado, mercados cativos das empresas estatais, política cambial, tarifas públicas defasadas, valorização financeira através da dívida pública, entre outros. A contrapartida foi o surgimento de um enorme passivo que agora tem que ser pago, pois não só o Estado não tem mais condições de liderar o crescimento, como o setor privado, historicamente dependente do setor público, não tem capacidade para assumir este processo.

Impõe-se, portanto, um profundo ajuste, que permita o saneamento financeiro do Estado sob pena de, caso não se faça, a hiperinflação vir à tona. É impossível continuar indefinidamente com os velhos mecanismos de financiamento da economia, não só porque eles implicaram a quebra do Estado, mas também porque é impossível voltar a crescer sem criar novos mecanismos de financiamento.

No entanto, alterar os velhos mecanismos significa, necessariamente, transformações estruturais cujos resultados supõem um rearranjo em que os mais diferentes interesses - quer do capital, quer do trabalho - serão de alguma forma ameaçados. Daí a dificuldade.

Na medida em que setores do trabalho também serão atingidos (por exemplo, o funcionalismo público ou os empregados em setores altamente subsidiados, que perderão competitividade), o fato de existir um movimento de trabalhadores relativamente organizado e forte dificulta o ajuste nesta área.

Mas principalmente porque as maiores perdas serão para setores do capital até agora privilegiados pelo nosso modelo de crescimento, e as perdas não serão pequenas, é que as dificuldades são enormes. Além de deixarem de ter à sua disposição os inúmeros mecanismos de transferência de renda que sempre tiveram e que lhes permitia acumular capital a taxas crescentes, alguns setores do capital sofrerão perdas patrimoniais significativas.

Esta é a realidade que define o grau de dificuldade. Nesta crise, setores do capital serão atingidos, na medida em que qualquer tentativa de se jogar, apenas sobre os trabalhadores, o custo do ajuste, não só é politicamente inexequível, como insuficiente.

Quem vai perder seu estoque acumulado e quem vai liderar o próximo processo de acumulação? Essa é a grande dúvida, que dá o caráter de disputa intracapital a esta crise, tornando-a muito mais complexa e dificultando as "soluções", já que são justamente estes setores os que têm maiores poderes para se defender dos "planos" e, conseqüentemente, desestabilizar a economia do país. O Plano Collor é o melhor exemplo disso. Não se pode negar que ele tentou distribuir as perdas, porém os setores que teoricamente seriam os mais atingidos conseguiram, rapidamente reverter o quadro.

"Planos", nos moldes dos que até agora foram implementados, por mais bem elaborados que sejam, não têm condições de prever e evitar todas as reações dos agentes econômicos cujos interesses tenham sido feridos, a não ser com polícia na rua, cometendo arbitrariedades como as que foram cometidas nos primeiros dias do Plano Collor. Aliás, nem com polícia, como demonstraram as experiências de mercados negros que surgiram nos países do Leste Europeu.

Estamos, portanto, diante de uma enorme interrogação. E a velha pergunta se impõe: o que fazer? Infelizmente não existe uma resposta. Quem vier com soluções prontas estará incorrendo no mesmo erro dos "pianos" anteriores.

De um lado, não existe hoje, no Brasil, nenhum grupo, setor ou classe que seja hegemônico e que esteja em condições de implementar um projeto. De outro, não existem soluções napoleônicas, que pairem acima do bem e do mal e permitam a arbitragem das perdas e ganhos que inexoravelmente decorrerão de qualquer plano de estabilização.

Como não existem soluções milagrosas, os caminhos que restam não são muitos: negociação ou hiperinflação. Restaria ainda a hipótese de algum setor da sociedade conseguir impor seu projeto, o que, nas atuais circunstâncias, dificilmente poderia ocorrer preservando-se o regime democrático.

A negociação seria, sem a menor dúvida, o caminho menos traumático e mais seguro para o encaminhamento de alguma solução para a crise brasileira. As experiências históricas de outros países mostram que, preservando as instituições democráticas e minimizando as perdas para todos, o caminho da negociação é o mais eficiente.

No Brasil, o quadro é mais complicado. Antes de mais nada, aqui o processo inflacionário desenvolveu algumas especificidades que o distinguem de outros casos.

A indexação generalizada criou a ilusão de que é possível conviver com a inflação crescente, sem maiores riscos. Como as perdas decorrentes do processo são mascaradas pela falsa impressão de recomposição dos rendimentos dada pela indexação, que permite que os ganhos nominais sejam crescentes, a brutal concentração de renda provocada pelas altas taxas de inflação não é explicitada.

A indexação salarial, por mais imperfeita que seja, dá aos setores de baixa renda a sensação de alguma proteção contra a inflação. Já os setores de alta renda são de fato protegidos, dado que o Estado lhes garante uma moeda indexada, através do famoso overnight, que preserva ou até mesmo amplia a renda destes setores.

O que não se percebe é que estas proteções se dão às custas do aumento do déficit do setor público e de taxas de inflação crescentes; conseqüentemente, da ampliação da fragilidade da economia como um todo. Mais ainda, que os mecanismos que permitem esta falsa proteção são exatamente os mecanismos que levam à hiperinflação.

Como o Estado vem "pagando a conta", amortecendo desta forma os conflitos inerentes ao processo inflacionário, a sociedade torna-se muito mais refratária a qualquer negociação que, necessariamente, terá que explicitar as perdas e ganhos de cada segmento.

Surge espaço para a impressão de que a crise não é tão grave, como se estes mecanismos amortecedores pudessem continuar ad infinitum, sem que as condições de deterioração da economia não se ampliassem. A hiperinflação é vista como uma possibilidade remotíssima, uma fantasia de alguns economistas mais pessimistas.

Complicando este quadro, o acumulo de enormes desigualdades sociais e a consolidação de privilégios incomensuráveis dificultam sobremaneira qualquer processo de negociação. A intransigência "justa" ou "injusta" dos mais diferentes segmentos da sociedade, somada à falta de representatividade e/ou legitimidade de algumas instituições teoricamente representantes de determinados setores, não tem permitido o estabelecimento de algum fórum de discussão que ao menos inicie um processo de negociação.

O impasse está criado e nenhum "plano", por mais "bem-bolado" que seja, tem condições de dar conta do problema.

Lídia Goldenstein é economista, pesquisadora do Cebrap e professora da Unicamp.