Economia

Em um quadro internacional de incertezas e volatilidade, o Brasil tem o desafio de voltar a utilizar mais amplamente o espaço e as políticas internacionais

A negação histórica da existência de um povo palestino, necessária para afirmar o status da terra como res nullius, como uma terra sem povo destinada ao povo a que fora prometida, mantém-se constante até hoje e é acompanhada da vilificação daqueles que estão “do outro lado”, daqueles menos civilizados, dos radicais, dos amantes da morte

Governo Dilma aposta no desenvolvimento para vencer a crise mundial

Governo Dilma aposta no desenvolvimento para vencer a crise mundial. Foto: José Cruz/ABr

Depois do baixo crescimento econômico brasileiro das duas últimas décadas do século 20, os anos 2000 mostraram uma extraordinária vitalidade da economia. O Brasil conseguiu finalmente se acoplar ao desempenho mundial, aliando, pela primeira vez, crescimento econômico e redução da pobreza e da desigualdade.

O crescimento do PIB foi de 3,5% ao ano entre 2003 e 2006, 4,6% entre 2006 e 2010 e alcançou 7,5% em 2010. Ao mesmo tempo, em oito anos caiu sistematicamente o Índice de Gini (medida da desigualdade) e mais de 30 milhões de brasileiros deixaram a pobreza e ingressaram na classe C.

Isso só foi possível graças à compreensão adotada pelo governo federal relativa a geração e sustentação do desenvolvimento econômico e a adoção de inovadoras medidas. Após a posse do primeiro governo Lula houve o combate ao ataque especulativo iniciado em 2002, com duras medidas visando recuperar o controle da situação macroeconômica: elevação dos juros, controle fiscal, minirreformas tributária e previdenciária. Mas felizmente não ficamos somente nisso, ainda que alguns o desejassem. Se assim fosse teríamos apenas repetido o desempenho macroeconômico pós-1994, com controle inflacionário, mas com crescimento pífio e acentuada vulnerabilidade externa.

Em paralelo às políticas macroeconômicas stricto sensu foram introduzidas modificações importantes em um conjunto de outras políticas e ações públicas. Na política externa, deu-se prioridade à América do Sul, foram valorizados os Brics e os países do Sul, reconhecidos o multilateralismo e as novas dimensões mundiais e efetivou-se a participação criativa do país na União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e no G-20. Passou-se também a dar maior importância ao mercado interno, com apoio à expansão do crédito (inicialmente por meio do consignado), ao combate à pobreza e à valorização do salário mínimo. E, a partir de 2006, consolidaram-se mudanças nas políticas econômica e de desenvolvimento, por meio da redução da vulnerabilidade externa e elevação das reservas internacionais, do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), da ampliação da capacidade de formulação, planejamento e gestão do Estado e de estímulos monetário e fiscal temporários, com a aceleração sustentada do crescimento econômico.

Uma grande crise internacional

Mas, a partir de 2008, uma das mais graves crises econômico-financeiras abateu-se sobre a economia mundial, iniciando-se com a crise do subprime nos EUA, que levou pânico às instituições financeiras, consequente “evaporação do crédito” e uma intensa e profunda queda da produção  industrial e do comércio em escala mundial.

O Brasil, no entanto, foi um dos últimos países a entrar na crise e um dos primeiros a abandoná-la, graças à menor vulnerabilidade externa (crescentes reservas internacionais), à solidez das contas públicas e à baixa contaminação das instituições financeiras relativamente aos ativos “tóxicos”. Também ajudaram algumas características ainda “ruins” de nossa economia, tais como os elevados compulsórios e taxas de juros ou o ponto tardio no ciclo econômico mundial, devidos às “décadas perdidas”.

Tão ou mais importante foi a adoção de medidas anticíclicas, tais como a redução (um pouco tardia) dos juros, a renúncia fiscal temporária e a elevação da liquidez da economia, com a redução dos compulsórios bancários e autorização aos bancos públicos para a compra de participação e/ou de carteiras de crédito de bancos menores. Nesse sentido, também foram indispensáveis a ampliação do financiamento via bancos públicos (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e BNDES), a ampliação dos investimentos do PAC (com a criação do programa habitacional Minha Casa, Minha Vida) e o reajuste dos salário mínimo e ampliação e reajuste do Bolsa Família e do seguro-desemprego.

Retomada e desafios

Dessa forma, já em 2010 o país registrou um PIB de acentuado crescimento (7,5%), sustentado em maiores taxas de investimento, continuidade da redução da pobreza e preservação do controle das principais variáveis macroeconômicas.

Esse processo apresentou, no entanto, um conjunto de novos (e velhos) desafios, que exigiriam um esforço suplementar de iniciativas governamentais e de políticas públicas. Entre esses desafios – que não são poucos nem pequenos – encontram-se o combate à recente alta da inflação, a redução dos juros, o enfrentamento da valorização cambial, a necessária elevação da taxa de investimento, a continuidade do combate à pobreza e da valorização do mercado interno, assim como o enfrentamento de duas grandes questões “de fundo”: a tributária (rompendo com sua desigualdade histórica em busca de  maior progressividade) e a ambiental (menosprezada durante décadas).

Desde o início de 2011, quando da assunção do novo governo federal, busca-se romper com iniciativas unilaterais do Banco Central, centradas unicamente na taxa de juros. Foram adotadas políticas macroprudenciais voltadas à regulação do crédito e outras visando à estabilização cambial, como a cobrança de IOF e a determinação de registro das operações com derivativos, o que objetivava uma entrada menor de recursos externos no país. Também se estuda a redução de mecanismos de indexação que permanecem nas relações econômicas do país desde 1996.

Dessa forma, procura-se evitar que o combate à inflação e/ou a busca de um crescimento menos intenso recaia exclusivamente sobre os juros, cujo nível ainda é uma aberração em termos mundiais e causa impactos fiscais e cambiais de séria gravidade ao país. Em contrapartida, cada vez mais se reconhece que o câmbio elevado ameaça a estrutura e integração produtiva, reduz a competitividade e favorece os concorrentes, sobretudo na produção de maior valor agregado. Apesar das recentes modificações para reduzir a entrada de recursos externos, a maior fonte de ingresso de dólares por meio do investimento direto estrangeiro continua livre, favorecendo o uso desses recursos para assegurar lucros financeiros, obtidos pela diferença das taxas de juros do país de origem e a Selic.

Tratou-se assim de enfrentar o problema da inflação – que de resto não é um problema exclusivamente brasileiro e em grande parte favorecido pelos preços das commodities – com inovadoras políticas fiscal, monetária e cambial, deixando-se de lado a simplista e muitas vezes suicida política de apenas cortar despesas públicas e aumentar a taxa de juros real.

Mas para que essas políticas pudessem se consolidar no tempo e enfrentar a resistência dos que apenas olham para trás, em paralelo às novas medidas monetárias e de controle inflacionário (como as chamadas políticas macroprudenciais), foram revertidos os estímulos dados em 2009-2010 no combate à crise, cortados cerca de R$ 50 bilhões em gastos públicos (depois ampliados em mais R$ 10 bilhões) e criados mecanismos de maior eficiência e gestão desse gasto.

Dificuldades internacionais

Esse processo, antes do agravamento das dificuldades econômicas nos EUA e na Europa, já apresentava avanços e diversas previsões da inflação para 2011 mostravam queda e proximidade aos limites da meta anual. Até o final de 2012 o Banco Central espera sua volta ao centro da meta. Mesmo o Boletim Focus – ainda apenas uma versão exclusiva da opinião do mercado financeiro – vem reconhecendo a queda da inflação. Já o crescimento econômico alcançava, até as vésperas da recente instabilidade internacional, previsões na faixa dos 4% de crescimento para 2011, próxima à média dos últimos anos.

Os desafios de mais longo prazo, sobretudo a preservação e o avanço da estrutura industrial e a elevação do investimento, continuam presentes e devem fazer parte da agenda nacional. A indústria sofreu os efeitos do dólar barato e cresceu menos que o PIB (em 2004-2010, avançou apenas 2,9% e o PIB, 4,4%). A taxa de investimento aumentou, mas ainda é baixa relativamente às necessidades do crescimento econômico (menos de 19%) e tem uma reduzida participação do setor privado nas inversões de longo prazo, que dependem fortemente do BNDES.

Dessa forma, em paralelo à defesa da produção nacional de maior valor agregado – com redução dos juros e controle da valorização cambial –, continua na ordem do dia a busca de novos instrumentos financeiros capazes de incorporar as diferentes fontes de recursos, públicas e privadas, nacionais e internacionais, capazes de substituir a participação ainda dominante do BNDES no financiamento de longo prazo.

Continua também presente, ainda mais se consideradas as novas demandas como o pré-sal, a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, o desafio do enfrentamento dos gargalos herdados das décadas de baixo crescimento e descaso com o desenvolvimento, sobretudo na infraestrutura, na educação e na ciência e tecnologia. Não menos importantes são os desafios do meio ambiente e do aquecimento global, que, embora não sejam problemas exclusivamente brasileiros, exigem medidas nacionais próprias e consideração das diferentes variáveis que assegurem ao país um meio ambiente sustentável.

As dificuldades recentemente enfrentadas pelos EUA e pela Comunidade Europeia não configuram ainda uma retomada da crise anterior (em sua intensidade e características) ou uma nova recessão. Até meados de setembro a maioria das avaliações – como as dos Bancos Centrais reunidos no Banco Internacional de Compensações, na Suíça – apontava para a desaceleração do crescimento econômico global, mas sem sinais de recessão. No entanto, esse período de desempenho pífio dos países desenvolvidos deve prolongar-se como uma letargia econômica, de crescimento lento e medíocre, mais grave na Europa do que nos EUA. As previsões para 2011 e 2012 não se afastam muito de 1% a 1,5% para a Europa e 1,5% a 2% para os EUA.

É certo que essas dificuldades dos países avançados são complexas, geram inseguranças e terão efeitos sobre a economia brasileira. Mas tudo indica que esses efeitos serão relativamente limitados e a economia brasileira poderá manter-se em condições excepcionais (com crescimento próximo a 3,5% em 2011). Ainda mais se o país continuar seu processo de valorização do mercado interno, com crescimento e distribuição de renda, e adotar políticas macroeconômicas criativas e articuladas com outros países emergentes (sobretudo Brics).

Há males que podem vir para o bem?

O mais recente sobressalto internacional trouxe de volta alguns problemas revelados com a crise de 2008 que ainda não foram enfrentados, sobretudo pelos países que estão no seu epicentro.

Ao contrário das previsões para os emergentes, que deverão continuar crescendo bem (mesmo que com desaceleração), as expectativas de crescimento dos países avançados são baixas e os prazos de recuperação longos. Essa verdadeira “zona de perigo” exige políticas corajosas e inovadoras tanto dos EUA como do Japão e da Europa. Mas isso não tem acontecido. Até agora os países europeus limitaram-se a usar medidas de austeridade fiscal (que favoreceram o baixo crescimento), quando deveriam buscar novos caminhos e ações coletivas para evitar a ampliação da crise grega e manter sua moeda.

Já os EUA valeram-se de políticas visando assegurar juros baixos, frouxidão monetária e desvalorização cambial, o que terminou por “salvar” os administradores financeiros e jogar seu ajuste sobre as costas do resto do mundo, em especial sobre aqueles países que, por estarem em melhores condições econômicas – tendem a captar o excesso de recursos gerado e desvalorizar sua moeda, como o Brasil. Tardiamente, no final de setembro, o governo norte-americano enviou ao Congresso novo pacote de estímulos.

Frente a uma conjuntura internacional complexa e desfavorável, o  Brasil precisa continuar adotando políticas inovadoras, favorecer o desenvolvimento de seu mercado interno, valorizar a produção nacional de maior valor agregado (o Programa Brasil Maior e a elevação do IPI para automóveis importados foram primeiros passos), aprofundar a redução dos juros e cuidar atentamente da valorização da moeda nacional.

Mas não é desprovido de sentido imaginar que a crise, apesar de sua complexidade e dos problemas que lhe são inerentes, até poderia ajudar o Brasil a enfrentar a correção do real sobrevalorizado e do juro elevado.

A recente redução da taxa de juros determinada pelo Banco Central brasileiro indica uma postura proativa e uma antecipação de medidas semelhantes às de outros Bancos Centrais de países emergentes. Mas esse processo precisa continuar, se quisermos deixar para trás nossa primazia mundial em elevadas taxas de juros. Essa decisão do Comitê de Política Monetária (Copom) de cortar a taxa básica de juro em setembro – ao contrário do que muitos analistas do mercado financeiro alardearam – talvez tenha sido a primeira demonstração de um BC independente face ao sistema financeiro privado.

O câmbio também precisa se tornar um objetivo de política econômica e conseguir articular as políticas fiscal, monetária e de controle de capitais. A desvalorização do real ocorrida em setembro, que já propiciou um alívio aos exportadores brasileiros, teve por origem a redução da Selic, alguma valorização da moeda norte-americana e a ampliação das remessas de empresas europeias e norte-americanas em dificuldades ao país de origem.

No entanto, os fluxos de capitais estrangeiros devem ser retomados proximamente, fazendo-se então necessárias novas medidas. As anteriores ações de intervenção sobre a valorização do real evitaram um maior agravamento, mas seriam insuficientes frente a novas avalanches de moeda estrangeira. Assim, poderia se tornar necessária sua substituição por medidas mais fortes (de intervenção unilateral no mercado de câmbio, controles de movimentos de capital ou de taxação à entrada de capital especulativo), acompanhadas pela continuidade da queda dos juros iniciada pelo Banco Central.

A redução dos juros ajudou na recente desvalorização do real e ambos poderão ter efeitos positivos sobre o custo de carregamento das reservas internacionais brasileiras, que alcançaram cerca de R$ 27 bilhões em 2010. Com reservas internacionais crescentes (cerca de US$ 355 bilhões), e portanto em melhores condições de enfrentamento de surpresas externas, seu custo de carregamento tem sido extraordinariamente elevado.

Dada a hegemonia das forças vinculadas ao capital financeiro, houve um evidente descaso em plano mundial na busca de superação da extraordinária desregulação dos bancos e das agências classificadoras de risco. Foram aportados recursos aos bancos, que foram assim recapitalizados,  especialmente nos EUA, mas não foram introduzidos novos instrumentos de regulação, como recomendado pelo próprio relatório sobre a crise financeira do Congresso norte-americano. Tanto os países avançados quanto o G-20 e os organismos multilaterais ficaram mais em declarações de intenções regulatórias do que em sua efetivação.

Tal desregulação foi, por um lado, funcional com o aumento irresponsável do crédito bancário (o subprime foi um exemplo disso), com a especulação financeira e a conivência das agências de risco. Por outro lado, sua continuidade tem favorecido a preservação das incertezas da economia internacional e recolocado o risco de repetição (ou de aprofundamento) da crise de 2008. Há pouco mais de um mês a revista The Economist divulgou uma pesquisa realizada com empresários de todo o mundo. Cerca de 60% consideraram que os bancos estão “escapando de uma regulação apropriada”, no que diz respeito a requerimentos de reservas de capitais e liquidez, controles de salários/bônus e standards de governança e transparência, entre outros instrumentos regulatórios.

Em um quadro internacional marcado por incertezas e volatilidade, o Brasil tem um desafio histórico: voltar a utilizar mais amplamente o espaço e as políticas internacionais, acentuar sua articulação com os países emergentes e pressionar os países avançados e as organizações internacionais na busca de mecanismos eficazes de enfrentamento à “guerra cambial”, de efetiva regulação financeira e de retomada da discussão e construção de uma alternativa viável ao sistema financeiro mundial criado em Bretton Woods.

Jorge Mattoso é economista e consultor, professor doutor do Instituto de Economia da Unicamp (1985-2009), secretário Municipal de Relações Internacionais de SP (2001-2003) e de Finanças de São Bernardo do Campo (2009), presidente da Caixa Econômica Federal (2003-2006)