Cultura

Na distante Praga, a professora Šárka Grauová é especialista em literatura brasileira traduziu Macunaíma, Memórias Póstumas de Braz Cubas, entre outros

Šárka Grauová é grande admiradora da literatura brasileira. Tradutora de Macunaíma, de Mário de Andrade, e Memórias Póstumas de Braz Cubas, de Machado de Assis, entre outros, a professora doutora da Universidade Carolina (Carolus) de Praga, é chefe do Departamento de Estudos Luso-Brasileiros

Professora Sarka Grauová traduziu, entre outros, Macunaíma e Budapeste

Professora Sarka Grauová traduziu, entre outros, Macunaíma e Budapeste. Foto: Arquivo pessoal

Nossa entrevistada é Šárka Grauová, a quem o Brasil muito deve, pois milita por nossas coisas em várias frentes. Professora doutora da Universidade Carolina (Carolus) de Praga (fundada em 1348 e uma das mais tradicionais da Europa), é chefe do Departamento de Estudos Luso-Brasileiros, presidente da Sociedade Checa de Língua Portuguesa e diretora da coleção de traduções intitulada Biblioteca Luso-Brasileira. Para que ninguém pense que se deixa intimidar por dificuldades, ela própria traduziu Macunaíma, de Mário de Andrade, e Memórias Póstumas de Braz Cubas, de Machado de Assis, entre outros

Como você chegou ao estudo de português, enquanto vocação e carreira?
É uma história meio mirabolante, mas a vida às vezes faz cabriolas assim. Entrei na Faculdade de Letras da Universidade Carolina de Praga em 1983, em pleno regime comunista que tinha a mania de querer planejar tudo, inclusive o número de especialistas a se formar em cada área. Por isso, em certos anos o Ministério da Educação permitia à universidade abrir somente determinados cursos.

Na verdade, eu queria estudar inglês. Antes do fechamento das fronteiras depois de 1969 (que se seguiu à invasão das tropas russas em represália à Primavera de Praga), minha família conseguiu passar um ano na Califórnia, onde meu pai era professor visitante na Universidade de Berkeley. Também um avô, que vi pela primeira vez só anos depois, vivia como imigrante político em Maryland... Acho que a língua inglesa tornou-se desde cedo meu espaço interior da liberdade. E, em 1983, a universidade oferecia o inglês somente em duas combinações possíveis: com o checo, que até muito me interessaria, mas descartei logo por ter a ver mais com a vida do país, e por isso sofrer supervisão ideológica brutal, e o português, do qual não sabia nada.

Havia exames de admissão – tinha sessenta ou setenta pessoas querendo ingressar e o numerus clausus era cinco. Pedi emprestado todos os livros de literatura de língua portuguesa que consegui encontrar... Achava horrível, tinha muito romance português neorrealista que eu detestava. Jorge Amado tinha vivido exilado na República Checa, morando num castelo da Sociedade dos Escritores Checoslovacos em um período em que alguns dos nossos escritores penavam nas minas de urânio. As traduções de suas obras eram publicadas com prefácios dos pontífices do regime...

Era difícil imaginar que tudo isso não tinha um fundo interesseiro. É preciso saber muito sobre Graciliano Ramos para perceber que seu relato da passagem pela Checoslováquia e pela União Soviética em Viagem tem pontos de discordância quanto ao regime que tentava iludi-lo. Lembro que gostei da Clarice, mas, como li no posfácio da tradutora Pavla Lidmilová que o título Perto do Coração Selvagem era inspirado em Joyce, achava que era pela influência do modernismo britânico que o livro era bom.

Passei nos exames, entrei na faculdade – mas continuava detestando o português, que senti como uma entre as muitas coisas impostas pelo regime, como Comunismo Científico ou Defesa do País Socialista, disciplinas especiais nas quais até fiz exames. Depois soube que, numa época mais antiga que minha memória, houvera uma disposição que obrigava a pessoa que queria comprar um quilo de laranja a adquirir um quilo de cenoura para acompanhar. Por assim dizer, o português é minha cenoura... Depois descobriram que, em lugares de clima como o nosso, a cenoura até traz maiores benefícios à saúde que as laranjas.

Nossa entrevistada é Šárka Grauová, a quem o Brasil muito deve, pois milita por nossas coisas em várias frentes. Professora doutora da Universidade Carolina (Carolus) de Praga (fundada em 1348 e uma das mais tradicionais da Europa), é chefe do Departamento de Estudos Luso-Brasileiros, presidente da Sociedade Checa de Língua Portuguesa e diretora da coleção de traduções intitulada Biblioteca Luso-Brasileira. Para que ninguém pense que se deixa intimidar por dificuldades, ela própria traduziu Macunaíma, de Mário de Andrade, e Memórias Póstumas de Braz Cubas, de Machado de Assis, entre outros

Como você chegou ao estudo de português, enquanto vocação e carreira?
É uma história meio mirabolante, mas a vida às vezes faz cabriolas assim. Entrei na Faculdade de Letras da Universidade Carolina de Praga em 1983, em pleno regime comunista que tinha a mania de querer planejar tudo, inclusive o número de especialistas a se formar em cada área. Por isso, em certos anos o Ministério da Educação permitia à universidade abrir somente determinados cursos.

Na verdade, eu queria estudar inglês. Antes do fechamento das fronteiras depois de 1969 (que se seguiu à invasão das tropas russas em represália à Primavera de Praga), minha família conseguiu passar um ano na Califórnia, onde meu pai era professor visitante na Universidade de Berkeley. Também um avô, que vi pela primeira vez só anos depois, vivia como imigrante político em Maryland... Acho que a língua inglesa tornou-se desde cedo meu espaço interior da liberdade. E, em 1983, a universidade oferecia o inglês somente em duas combinações possíveis: com o checo, que até muito me interessaria, mas descartei logo por ter a ver mais com a vida do país, e por isso sofrer supervisão ideológica brutal, e o português, do qual não sabia nada.

Havia exames de admissão – tinha sessenta ou setenta pessoas querendo ingressar e o numerus clausus era cinco. Pedi emprestado todos os livros de literatura de língua portuguesa que consegui encontrar... Achava horrível, tinha muito romance português neorrealista que eu detestava. Jorge Amado tinha vivido exilado na República Checa, morando num castelo da Sociedade dos Escritores Checoslovacos em um período em que alguns dos nossos escritores penavam nas minas de urânio. As traduções de suas obras eram publicadas com prefácios dos pontífices do regime...

Era difícil imaginar que tudo isso não tinha um fundo interesseiro. É preciso saber muito sobre Graciliano Ramos para perceber que seu relato da passagem pela Checoslováquia e pela União Soviética em Viagem tem pontos de discordância quanto ao regime que tentava iludi-lo. Lembro que gostei da Clarice, mas, como li no posfácio da tradutora Pavla Lidmilová que o título Perto do Coração Selvagem era inspirado em Joyce, achava que era pela influência do modernismo britânico que o livro era bom.

Passei nos exames, entrei na faculdade – mas continuava detestando o português, que senti como uma entre as muitas coisas impostas pelo regime, como Comunismo Científico ou Defesa do País Socialista, disciplinas especiais nas quais até fiz exames. Depois soube que, numa época mais antiga que minha memória, houvera uma disposição que obrigava a pessoa que queria comprar um quilo de laranja a adquirir um quilo de cenoura para acompanhar. Por assim dizer, o português é minha cenoura... Depois descobriram que, em lugares de clima como o nosso, a cenoura até traz maiores benefícios à saúde que as laranjas.

Não contaria esses pormenores se fosse uma experiência puramente subjetiva. O fato é que foi uma experiência de ao menos duas gerações dos chamados lusitanistas (apesar de todos os planos do regime, pouquíssimos lusitanistas graduados realmente chegaram a trabalhar com português). Vlasta Dufková, minha colega da faculdade e tradutora galardoada de Guimarães Rosa, ainda hoje costuma dizer que é uma lusitanista a contragosto.

Para se ter ideia, pode ser útil referir como exemplo nossa maneira de estudar a língua. Usávamos um manual escrito por Zdeněk Hampl, pai fundador dos estudos portugueses, para o português do Brasil. O livro saiu em 1965, mas com a ditadura militar no Brasil e a virada do regime em Portugal, o qual depois de 25 de abril tinha claras tendências socialistas, o português do Brasil passou a ser, como se diz hoje, politicamente incorreto. No início de cada aula riscávamos as palavras e maneiras de dizer brasileiras e escrevíamos por cima delas equivalentes portugueses. Uma loucura. Estudávamos para passar nos exames, memorizando “frases úteis” como “João traz luto nas unhas”, um ditado que nunca ouvi alguém dizer. Também sabia que o plural de porco-espinho é porcos-espinhos e o plural de peixe-espada é peixes-espadas. Não surpreende que, naquela época, costumasse escrever com tinta verde, cara aos surrealistas. O primeiro brasileiro vivo que encontrei foi a jovem filha de uma empregada da Embaixada do Brasil em Praga que estava à procura de alguém que lhe desse aulas de inglês. Deve ter sido em 1986 ou 1987.

Mas, cursando o terceiro ano, quis ser simpática com nossa leitora de português, deprimida também um pouco por nosso boicote, e percebi que não era capaz de dizer em português as coisas mais elementares. Depois, no quinto ano do curso, quando precisava escolher um tema para minha tese de mestrado, pedi a nosso professor de literatura inglesa ajuda na escolha de um tema ligado à prosa experimental. Este chamou minha atenção para um escritor supostamente brasileiro que se chamava Machado de Assis e era correlacionado por um crítico, possivelmente Ihab Hassan, a Laurence Sterne. Meu português continuava muito ruim – também na época só havia um dicionário acessível ao público, que era o Caldas Aulete, edição de 1958, na Biblioteca Nacional –, mas encontrei na bendita Biblioteca Nacional uma tradução inglesa, Posthumous Reminiscences of Braz Cubas. A tradução não era muito boa, mas, se utilizada como interlinear, era mais do que suficiente. Até o ponto final da tese consegui ler Machado quase por inteiro. Isso era em 1988.

Como naquela época não existisse uma cadeira de Literatura Comparada, na sequência da tese tive de optar por um caminho: literatura anglo-americana ou literatura luso-brasileira. Adorava os professores do Departamento dos Estudos Ingleses e Americanos, cultos, amáveis, solícitos, tudo isso qualidades raras nos professores universitários submetidos a várias triagens políticas. Mas, comparadas ao vasto sertão da literatura de expressão portuguesa, as ruelas alinhadas da Grã-Bretanha, repartidas entre os especialistas checos com territórios delimitados, já começavam a perder seu encanto. Tomei fôlego e mudei com toda a minha bagagem para um outro espaço de liberdade…

Desde o início, encaminhou-se mais para a literatura portuguesa ou para a brasileira?
Depois do meu primeiro surto de interesse por português, consegui bolsa para um curso de verão em Lisboa. Gostei demais de Lisboa e dos portugueses, mas ao mesmo tempo passei pela experiência frequentemente comentada por nossos alunos que, confrontados com as duas maiores literaturas de expressão portuguesa, consideram a literatura portuguesa a mais exótica. Depois de algum tempo, a gente começa a ficar desconfiada e percebe que a comunicabilidade aparentemente fácil da literatura brasileira é, na verdade, uma efusividade de amigo da onça e é preciso estudar muito para entender esse mundo outro por trás das aparências fáceis. Mas, à primeira vista, a maior parte dos leitores europeus acha mais fácil encontrar uma experiência humana universal na literatura brasileira. Hoje a situação está mudando, a escrita portuguesa passou por uma grande transformação nos últimos vinte, trinta anos, chegando a um ritmo diferente das frases, que ficaram mais naturais e curtas. Mas assim mesmo acho que o desconhecimento da língua (ou uma tradução deficiente) mina fatalmente a literatura portuguesa, enquanto na brasileira, voltada mais para o mundo lá fora do que para as luzes e sombras dentro da alma, há algo que sempre sobrevive.

Havia dois fatores mais. Primeiro, ainda aluna da faculdade, frequentara informalmente o curso de Literatura Hispano-Americana, que tinha uma ótima professora na pessoa de Hedvika Vydrová, a qual me fez aprender o espanhol e também me abriu um possível caminho para a literatura latino-americana. E, segundo, a única coisa das literaturas lusófonas que eu realmente conhecia era Machado de Assis.

Portanto, minhas preferências teriam sido claras, se não houvesse o mundo exterior. Quando era aluna, não havia um professor de literatura portuguesa e brasileira na faculdade. As aulas eram dadas por um velho e afável tradutor de literatura espanhola e hispano-americana, também responsável, em uma editora, pelas traduções do português. Com a criação de uma vaga no Instituto dos Estudos Românicos, ao qual o Departamento de Estudos Brasileiros pertence, praticamente de um dia para outro tive de começar a dar aulas de tudo, desde os trovadores galaico-portugueses até Caio Fernando Abreu. Hoje não me surpreende que tenha saído da faculdade em 1994 para voltar só sete ou oito anos depois. Naturalmente, havia outras razões. Tinha dificuldade em me conformar com o fato de que a universidade, uma instituição por sua própria natureza de caráter conservador, com a mudança do regime, em 1989, tivesse mudado muito pouco. Mas também as leituras tinham de sedimentar. Acho que só com minha “segunda dentição”, como diria Oswald de Andrade, é que começa minha “carreira”, caso haja uma.

Hoje em dia, tento seguir, no âmbito do possível, as duas literaturas. É muita coisa ao mesmo tempo, mas tem de ser assim: em um país tão pequeno como o nosso, a gente não pode se dar ao luxo de uma especialização muito estreita. Mas a maior parte daquilo que escrevo, traduzo e leciono tem a ver com literatura brasileira. Lendo António Lobo Antunes ou Lídia Jorge, tenho uma enorme vontade de começar a traduzir, mas uma vida não chega. Mesmo assim, Finisterra, de Carlos de Oliveira, continua uma grande tentação.

Costuma ir a Portugal, que, comparado com o Brasil, não é tão longe assim? E ao Brasil?
Passei seis meses no Brasil, em 1991, e três meses em Portugal, em 1994. A partir daí, também por motivos pessoais, só viagens rápidas, para uma biblioteca (geralmente o Ibero-Amerikanisches Institut em Berlim, que fica mais perto) ou para dar aula em Portugal, dentro do âmbito do Programa Erasmus, que apoia o intercâmbio universitário de alunos e docentes. Em 2010, depois de batalhar muito, a Universidade Carolina conseguiu fechar um convênio de colaboração com a USP. Espero que seja um caminho para que nossos contatos com o Brasil se tornem mais intensivos e frequentes.

Mas confesso que minha fé nesse circo ambulante que é a atual vida universitária anda escassa. Nesse sentido, simpatizo com os monges medievais, cuja maior virtude era a stabilitas: acho que há pouca coisa mais útil para a literatura do que ficar em casa lendo e escrevendo. E tenho de agradecer às instituições brasileiras pela magnanimidade com a qual digitalizam os acervos das bibliotecas e publicam as revistas eletrônicas. Prestam um grande serviço à divulgação da cultura brasileira.

Apesar dessa pouca propensão para a mobilidade universitária, ultimamente penso mais nas possibilidades de uma coordenação maior dos lusitanistas e brasilianistas da região. No fim de novembro, em Budapeste teve lugar a terceira edição das Jornadas de Língua Portuguesa e Culturas Lusófonas da Europa Central e do Leste. Agora temos também a Sociedade Checa de Língua Portuguesa, que une as pessoas que trabalham nessa área no país. Temos de pensar mais em como nos enriquecer com nossas respectivas vantagens e como suprir nossos defeitos em um clima que seja de colaboração, e não de competição.


Que livros brasileiros e portugueses já traduziu?
Não sou tradutora profissional no sentido de me sustentar da tradução. Minhas traduções são sempre um ato de amor materializado. Minha primeira tradução de português não podia ser outra que Memórias Póstumas de Braz Cubas, de Machado de Assis. Depois veio Macunaíma, de Mário de Andrade, um convívio exigente, mas incomparável; é uma pena não ser possível traduzir o mesmo livro pela segunda vez... Essa alta saturação de Brasil deu ensejo a um “caso” com a literatura portuguesa, nomeadamente o romance Para Sempre, de Vergílio Ferreira. Por conta dos meus alunos que não queriam entender o que é “o complexo colonial de vida e pensamento” de que fala Alfredo Bosi, traduzi Boca do Inferno, de Ana Miranda. Traduzi, do italiano com um olho na versão portuguesa, uma parte da História da Literatura Brasileira, de Luciana Stegagno-Picchio, e supervisionei a tradução de outras três colegas. Fiquei muito feliz por termos conseguido publicar o calhamaço de 693 páginas com a professora – a quem sempre estimei muito – ainda em vida. O último livro que traduzi foi Budapeste, de Chico Buarque. Há tempos quis traduzir um livro acessível a um público maior, e por um tempo Budapeste se tornou minha “Pasárgada”. Quando o livro foi publicado, um leitor, ele mesmo excelente tradutor de Salman Rushdie e Vladimir Nabokov, chamou minha atenção para um pronunciado ritmo das frases. Não sei se alguém no Brasil reparou nisso – ou se fui eu quem inventou uma coisa inexistente no original. Espero que não.

Tenho outros projetos, mas minha agenda na universidade toma demasiado tempo. Depois de algum tempo sem tradução, estou trabalhando na versão checa de um ensaio que Walnice Nogueira Galvão teve a gentileza de escrever para acompanhar uma tradução checa de Castro Alves – e é um prazer. Já estou com uma comichão nos dedos, acho que uma nova tradução de maior fôlego ronda.

Como se constituiu a linhagem de tradutores checos de português literário? É importante no panorama da tradução literária do país, quando comparada a outras línguas?
As traduções de português, assim como de outras línguas ocidentais, passaram por duas fases. Antes da Segunda Guerra, os livros foram, na maioria dos casos, traduzidos por amadores, os quais, geralmente por causas acidentais, entraram em contato com as respectivas regiões culturais. Traduziam rápido, não se preocupando muito com a qualidade literária do texto.

A situação mudou consideravelmente com a divulgação dos preceitos filológicos e a diferenciação dos estudos de tradução da filologia geral. Essa descrição vale para a maioria dos países europeus, mas na República Checa houve mais um acontecimento importante, do qual as literaturas consideradas “marginais” se beneficiaram muito.

Depois do golpe de 1948, o Estado comunista, para melhor implantar a censura, uniu toda a atividade editorial em uma editora cujo nome, aparentemente barroco, era de fato a tradução literal do seu arquétipo russo: Casa Editora das Belas Letras, Música e Belas Artes. A imitação do modelo era fiel a ponto de as seções serem chamadas “colcoz” (indústria coletiva). Com a passagem dos anos, porém, essa mesma editora, que nos anos 1960 passou a ser chamada Odeon, conseguiu reunir ao redor de si os maiores especialistas das diversas áreas linguísticas, inclusive aqueles proibidos de lecionar nas universidades e de publicar, e promulgou um alto padrão da cultura de tradução. Não por acaso, alguns dos maiores especialistas em literatura dos países mais diversos provêm dessa mesma editora, que, infelizmente, desapareceu no início da década de 1990. Mas ao mesmo tempo é preciso dizer que se, por um lado, a cultura se beneficiou dessa situação, por outro perdeu: vários poetas que começaram a se dedicar sistematicamente à tradução perderam sua voz poética original e nunca mais escreveram obras de valor.

Graças a essa editora, as literaturas portuguesa e brasileira tiveram chance de ganhar um fundamento sólido. Havia um esforço sistemático para introduzir ao leitor checo os textos mais importantes das literaturas estrangeiras, especialmente dos autores clássicos, acompanhados por estudos bem informados.

Assim, já em 1954 começaram a ser publicadas as obras de Eça de Queirós em quatro volumes. Seguiu-se uma tradução de Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, várias traduções das obras de Aluísio Azevedo, José de Alencar, Raul Pompeia, Lima Barreto... E, na pobreza intelectual da cultura oficial daqueles anos, as tiragens eram enormes. Alguns números, à guisa de ilustração. Em 1962, o Livro de uma Sogra, de Aluísio Azevedo, saiu em 10 mil exemplares (isso num país de 10 milhões de habitantes). Em 1969, O Guarani, de José de Alencar, alcançou 40 mil exemplares. E, ainda em 1982, um conjunto de novelas de Guimarães Rosa, João Antônio, J.J. Veiga, Osman Lins e Clarice Lispector – ou seja, nem sempre escritores “fáceis” – saiu em 49 mil exemplares!

Dessa época nos ficou o costume de traduzir muito. Não sei se há outro país que tenha traduzido Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro, ou Crónica do Rei D. Pedro I, de Fernão Lopes. Havia só um senão. Tudo dependia do especialista que a editora conseguia encontrar. E Zdeněk Hampl era extremamente trabalhador, mas sem a capacidade de reconhecer valor literário – como atesta, por exemplo, a escolha do Livro de uma Sogra, uma obra (merecidamente) pouca lida inclusive no Brasil.
Quem levou as traduções checas de português à maturidade foi Pavla Lidmilová, formada em espanhol, que aprendeu português a ponto de conseguir traduzir Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Pavla traduziu muitíssimos autores importantes que, graças a ela, tornaram-se acessíveis ao leitor checo: Clarice, Erico Verissimo, Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles, Murilo Rubião, Darcy Ribeiro, Moacyr Scliar...

Na virada dos anos 1970, na Odeon, apareceu como jovem editora Vlasta Dufková. Nela Pavla Lidmilová encontrou uma “contravoz”, que ajudou a decantar a fala checa dos escritores brasileiros. Tenho orgulho de ser amiga de Pavla Lidmilová e de ter Vlasta Dufková não somente como minha colega da faculdade, mas também como editora de quase todas as minhas traduções. Espero também encontrar um tradutor a quem passar o leme.

O público em geral não se dá conta disso, mas a importância de uma literatura no panorama de outros países depende muito dos tradutores. Um excelente livro não ganha leitores aparecendo em uma tradução nefasta. As literaturas de língua portuguesa, nesse sentido, têm sorte. Pavla Lidmilová foi agraciada com o Prêmio de Tradução da República Checa, outorgado pelo Ministério da Cultura, pelo conjunto de seu trabalho. Vlasta Dufková foi laureada com o Prêmio Josef Jungmann, outorgado pela Associação dos Tradutores e Intérpretes. E há outras traduções premiadas.

Antes do Protocolo de Bolonha, que impôs a todos os países da União Europeia a uniformização dos currículos universitários, vindo a empobrecer muito o panorama e a prejudicar especialmente os estudos brasileiros, como eram os cursos que a Universidade Carolina de Praga oferecia sobre Portugal e sobre o Brasil?
Na Universidade Carolina, a tradição dos estudos luso-brasileiros vem de meados dos anos 1960. O fundador foi o professor Zdeněk Hampl (1929-1986), que nunca teve um verdadeiro colega: dava aulas de língua, linguística e literatura. Como já disse, traduziu muitos livros, tanto de literatura portuguesa quanto de literatura brasileira, publicou um manual de português, uma gramática e dois dicionários. Quando adoeceu, o fato de ele não ter pensado, ou não ter podido pensar, em um sucessor mostrou-se fatal. Era preciso recomeçar quase do princípio.

Para nós, o Protocolo de Bolonha não teve, em alguns aspectos, as mesmas consequências que tem para os países ocidentais. Nossos estudos portugueses tinham, em 1989, só uma professora de linguística, sem doutorado. A grande batalha era pela criação de novas vagas. A meu ver, um departamento precisa ter, no mínimo, quatro docentes. Sem isso, ninguém pode tirar um semestre sabático e, em caso de imprevistos, e estes infelizmente não faltam, existe o eterno perigo de um recomeço a partir da estaca zero, de um amadorismo perpétuo.

Outra batalha que infelizmente continuamos perdendo é quanto ao salário do professor. Na República Checa, um professor universitário, especialmente na área das Ciências Humanas, não raro ganha salário idêntico ao de um operário braçal sem curso secundário. Não o digo por nós. Havia ao menos duas gerações anteriores que não podiam fazer o trabalho que teriam gostado de fazer, e eu, pessoalmente, continuo grata por essa possibilidade. Como costumava dizer uma senhora amiga minha, faço o que gosto, e ainda me pagam. Mas nossos jovens já vivem em um mundo diferente, e é extremamente complicado encontrar um aluno competente que queira ingressar na carreira acadêmica. E nas disciplinas como a nossa, com número limitado de vagas, não aparece um aluno dotado a cada ano, nem a cada dois ou três. Um de excelência que aceita as ofertas das grandes empresas que oferecem o triplo do nosso salário, ou mais, é sempre uma perda lamentável.

No que diz respeito à distribuição dos estudos ligada a Portugal e ao Brasil, desde que me lembro procuramos dividir as aulas de maneira paritária. Há seis anos temos o leitor brasileiro da rede dos leitorados do Itamaraty, que partilha uma vaga com o leitor português enviado pelo Instituto Camões. Em 2006, nosso departamento mudou o nome de Departamento Português para Departamento de Estudos Luso-Brasileiros.

Apesar disso, a pressão para a escolha do português de Portugal existe. Todo aluno tem direito a dois semestres em outro país-membro da União Europeia, e um ano em Portugal é, sem dúvida, uma experiência de muito peso. O Instituto Camões é uma presença sensível no nosso dia a dia: tem uma pequena biblioteca, um vasto programa de atividades extracurriculares, faz lançamentos de traduções, projeções de filmes, apoia a maior parte das nossas atividades, seja do ponto de vista financeiro ou moral. Compartilhamos o mesmo espaço – meio andar de um belo palácio barroco no centro histórico de Praga. A Embaixada do Brasil às vezes realiza projeções de filmes. Agora, finalmente, começamos a concretizar o projeto de uma sala brasileira numa antecâmara do “nosso palácio”, que abrigará exposições sobre temas brasileiros. O programa de apoio a traduções de livros brasileiros é fundamental. Mesmo assim, a opção por Portugal continua mais natural e mais cômoda. Não obstante, temos alunos que optaram pelo Brasil, conseguiram bolsas ou outro tipo de apoio financeiro e passaram um determinado tempo em universidades brasileiras. Se eu fosse Gilberto Freyre, escreveria um estudo sobre a influência de moços brasileiros no interesse despertado pelo Brasil na República Checa...

No passado, muitas vezes havia uma animosidade luso-brasileira, o que prejudicava imensamente a divulgação da cultura tanto brasileira quanto portuguesa. Nos últimos seis anos, vivemos um período de trégua com excelentes resultados para todos. Temos o prêmio de tradução Hieronymitae Pragenses para tradutores de português principiantes de todas as universidades checas, cofinanciado pelo Instituto Camões e pela Embaixada do Brasil. Temos festas de Natal e carnaval luso-brasileiras. As projeções dos filmes brasileiros, com petiscos e caipirinha, assim como palestras de professores visitantes, têm um lugar natural no recinto do Camões etc. O merecimento maior pertence sem dúvida ao atual diretor do Centro de Língua Portuguesa, Joaquim Ramos, o Magnânimo, mas se os senhores embaixadores não aceitassem, como também já aconteceu, seria impossível termos essa lusofonia sorridente que atrai pessoas.

Agora, depois dessa reforma, como ficaram esses cursos? Existem só na Universidade Carolina ou em outras também?
Tem outras duas universidades checas com curso universitário de português, tanto em nível de licenciatura quanto de mestrado: Universidade Masaryk de Brno e Universidade Palacký de Olomouc. Em ambas, português faz parte de Cátedras de Estudos Românicos. Os estudos portugueses em Brno datam de 1982 e em Olomouc, de 1993.

Antes da reforma, nossos cursos de mestrado eram de cinco anos. Agora estão divididos em três anos de licenciatura e dois de mestrado. A diferença parece cosmética, mas não é.

Em primeiro lugar, para cumprir o protocolo, passamos praticamente de um dia para outro do ensino universitário para uma elite intelectual (uns 15%) para o ensino universal, em que 60% dos jovens de 20 anos entram na universidade. Não sabemos como ensinar pessoas completamente despreparadas que, de repente, sentiram vontade de chegar à licenciatura. Não queria que soasse como discriminação: nossa escolaridade obrigatória data de 1774 e as universidades estão cheias de professores vindos de pequenas vilas e povoados da província, como meu pai. Mas acho que temos de nos conformar com certas limitações inatas. Como eu não posso ser cantora ou ginasta, há outros que não podem ser tradutores. E, por causa dessa mudança brusca, não temos instrumentos suficientes para orientar alunos interessados em cursos mais acessíveis para umas universidades e os que têm em vista uma carreira universitária para outras.

Em segundo lugar, com aulas nos dois semestres, e o mestrado no início de quarto ano na universidade, poucos alunos conseguem escrever o trabalho de licenciatura durante o terceiro ano, como previsto. No meio tempo, começam a trabalhar e há aqueles que, contagiados por vida prática e dinheiro fácil, nunca mais voltam – e os que voltam não demonstram o mesmo interesse. Assim perdemos, infelizmente, também alguns dos mais aplicados e competentes.

Em terceiro, independentemente do Protocolo de Bolonha, tudo isso vem acompanhado de uma queda de interesse por disciplinas filológicas na Europa. Em Portugal, as universidades vêm fechando boa parte dos cursos de língua e cultura estrangeiras. E começamos a sentir os efeitos da baixa natalidade dos anos 1990, nos quais havia, de repente, coisas mais interessantes para fazer do que ter filho.

Receio que esta nossa Europa tenha vista curta. Durante sua recente visita a Praga, Ana Paula Laborinho, presidenta do Instituto Camões, nos disse que, na China, as universidades declararam a necessidade de 5 mil professores de língua portuguesa nos próximos anos. Há cerca de três anos a China tinha três universidades a ensinar português. Atualmente tem dezessete e, nos próximos cinco a dez anos, conta aumentar os cursos superiores nessa área para 35. Em Praga, ao contrário, este é o primeiro ano em que foi contratada uma agência publicitária para divulgar a possibilidade de inscrição no curso de português. Pouco tempo atrás me dei conta de que o curso de Literatura Brasileira que administro há anos ficou demasiado complicado para os alunos atuais. O passo a seguir será um curso de licenciatura à maneira de escola de idioma Berlitz, com os assuntos teóricos relegados ao curso de mestrado... E, como nos estudos luso-brasileiros há poucos alunos de doutorado, significa que não teremos muitas possibilidades de passar para a frente aquilo que sabemos.

Como é o currículo, isto é, quantos anos, quais os conteúdos, quantos alunos em cada ano? Quantos professores no departamento?
Do ponto de vista do conteúdo, o currículo está dividido em quatro partes. No curso de licenciatura são: língua prática (português de Portugal), prevalente nos primeiros anos, já que ultimamente deixamos de pressupor um conhecimento prévio de língua; Linguística Teórica; e, por fim, História, Cultura e Literatura portuguesas e brasileiras; da quarta parte constam disciplinas obrigatórias para todo aluno da Faculdade de Letras (filosofia, línguas estrangeiras e educação física). No terceiro ano há um semestre de português do Brasil dado pelo leitor brasileiro, encarregado também de dois semestres de conversação. Na área da História e Cultura, os alunos passam por dois semestres de História de Portugal e do Brasil, quatro semestres de Civilização portuguesa, brasileira e da África lusófona, têm um ano de História de Literatura Portuguesa e outro de Literatura Brasileira, com o terceiro ano dedicado ao século 20.

A especialidade da Universidade Carolina é que lecionamos em checo (em Brno e em Olomouc, a partir do segundo ano, a maior parte das disciplinas é administrada em português). Estamos convencidos de que, depois da graduação, a maioria dos alunos vai exercer tarefas que pressupõem a capacidade de se comunicar nas duas línguas ou passar informações de uma para outra.

No curso de mestrado reformado que oferecemos em 2012 pela primeira vez, decidimos dar maior realce ao contexto ibero-americano. Além disso, os alunos podem escolher entre orientação linguística ou histórico-cultural. Como somos apenas quatro professores checos e dois leitores trabalhando em tempo parcial, abriremos o curso de mestrado somente de dois em dois anos.

Como já disse, o número dos alunos vem diminuindo. Admitimos geralmente por volta de quinze, dos quais dez passam para o segundo ano e sete ou oito terminam o curso. Com o curso do mestrado ainda não temos experiência suficiente, mas a expectativa é de 40% de alunos do curso de licenciatura.

Sabe-se que há uma coleção de textos traduzidos do português, ligada à universidade. Pode dizer quantos e quais são esses textos? A editora pertence à universidade?
No âmbito do Centro de Pesquisa do Instituto de Estudos Românicos (de que nosso departamento faz parte) foi fundada, em 2005, a Biblioteca Luso-Brasileira, cujos primeiros dez volumes foram publicados pela Torst, uma editora pequena mas de grande prestígio. A partir do 11º volume passaremos, por razões técnicas, para a editora Triáda. O intuito dessa coleção é oferecer ao leitor três livros em um: primeiro, há o texto traduzido; segundo, há um estudo de vinte ou mais páginas escrito por um especialista na área; e, por fim, há uma tabela cronológica que apresenta a vida do escritor num quadro sinóptico com a “vida” do país da época.

Até agora publicamos oito livros. Foram Gil Vicente: Auto da Barca do Inferno (2005); Alexandre Herculano: Lendas e Narrativas (2006); Sophia de Mello Breyner Andresen: Contos Exemplares (2007); João Guimarães Rosa: Buriti (2008); Teolinda Gersão: Silêncio (2009); Chico Buarque: Budapeste (2009); João Guimarães Rosa: Dão-lalalão (2010); Almeida Garrett: Frei Luís de Sousa (2011). Nesse momento preparamos para o prelo outros cinco livros: Castro Alves: Gonzaga ou A Revolução de Minas (2012); Jorge Listopad: Biografia de Cristal (2013); Eça de Queirós: A Correspondência de Fradique Mendes (2013); Branquinho da Fonseca: Barão e outros Contos (2013); e, graças a um programa de apoio da Biblioteca Nacional do Brasil, também uma reedição de Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, acompanhada de um novo estudo (2013).

No âmbito do mesmo Centro de Pesquisa, também publicamos a mencionada tradução da História de Literatura Brasileira, de Luciana Stegagno-Picchio (2007), e trabalhamos numa nova edição comentada de uma tradução checa da Viagem à Terra do Brasil, de Jean de Léry, realizada por dois chamados “Irmãos da Morávia” protestantes já em 1590, poucos anos depois da publicação do livro em latim.

Vocês, na Universidade Carolina, recebem apoio da embaixada ou de outros órgãos brasileiros? Recebem estudantes brasileiros? Nossa presidenta Dilma Rousseff acaba de anunciar o programa Ciência sem Fronteiras, pelo qual 100 mil bolsistas brasileiros estudarão fora do Brasil – programa a ser implementado até 2015. Agora, haverá bolsas não só para os países europeus e os Estados Unidos, mas também para China e Japão, o que é uma novidade. Seu país está incluído entre os beneficiados?
Ultimamente, o interesse da Embaixada do Brasil pela universidade mudou, conforme já comentei. Antigamente íamos à embaixada em 7 de setembro, e era só. Agora o senhor embaixador vem ao palácio para a festa de Natal, para a cerimônia da entrega do prêmio de tradução Hieronymitae Pragenses, somos informados sobre possibilidades de apoio financeiro às traduções literárias.

Há alunos brasileiros na faculdade, alguns fazem doutorado em Estudos Ibero-Americanos, outros frequentam vários cursos de interesse em diferentes faculdades, como teatro de marionetes, por exemplo. Praga é também um dos poucos lugares do antigo Leste Europeu incluído no programa Ciência sem Fronteiras, embora a instituição escolhida não seja a universidade, mas a Academia das Ciências, um complexo de institutos de pesquisa, muitos dos quais relacionados às Ciências Exatas e Naturais. Quanto à universidade, em 2010 foi assinado um convênio com a USP.

Walnice Nogueira Galvão é professora Emérita da FFLCH-Universidade de São Paulo