Estante

Os resultados do Bolsa Família na vida dos usuários

vozes_do_bolsa_familia.jpgOs dados empíricos que fundamentam a análise presente no livro são as vozes das mulheres beneficiárias do Programa Bolsa Família, perspectiva essencial e oportuna para quem quer se debruçar sobre essa realidade complexa que é viver em condições de pobreza extrema, o que vem acompanhado de formas de exploração e violência de toda natureza.

Mais instigante ainda se torna a realidade aqui apreendida porque envolve um par de pesquisadores composto de forma pouco usual na literatura das ciências sociais voltadas ao mundo empírico. Não se trata somente de uma pesquisadora e um pesquisador, mas da combinação de suas especialidades: ela, cientista política; ele, filósofo.

O resultado do trabalho dessa dupla é um livro instigante a partir do olhar de cada um sobre uma realidade por eles vivida e da qual foram extraídos dados provenientes de 150 entrevistas realizadas com essas mulheres, no período de cinco anos.

Vozes do Bolsa Família apresenta uma estrutura perspicaz: mescla capítulos de teor teórico com outros de caráter eminentemente empírico. Assim, são tratadas nos dois primeiros capítulos questões relativas à Teoria Crítica, da perspectiva ética, que funcionam como bases teóricas da pesquisa de campo e análise dos dados. O objetivo do trabalho fica claro: “(...) investigar os efeitos políticos e morais (...) do BF sobre os usuários, à luz de uma concepção de autonomia individual baseada no capability approach desenvolvido por Amartya Sen e Martha Nussbaum, assim como da conexão entre renda monetária e autonomia individual teorizada em particular por George Simmel” (p. 15).

E é a partir da perspectiva de Sen que o quarto capítulo aborda a questão da pobreza enquanto conceito multidimensional. Aí são tratadas várias de suas dimensões, contrapostas à Constituição de 1988, ressaltando-se em especial as dimensões da vergonha, da desigualdade interna às famílias, da invisibilidade e da mudez, para além das dimensões propriamente econômicas e materiais.

No entanto, é no terceiro capítulo do livro que se concentra a riqueza dos cinco anos em que foram realizadas as entrevistas. As mulheres aparecem com sua força e lucidez, provocadas pelos entrevistadores para falar sobre os resultados do programa na vida de cada uma. Os discursos são entremeados por análises dos autores e, mais frequentemente, pelos relatos do impacto que as diferentes – nas relativamente homogêneas – situações de pobreza e exposições ao risco social causaram sobre eles próprios.

Quanto aos resultados, há de se destacar dois principais: o primeiro, dar voz e visibilidade a esses sujeitos sociais – as mulheres pobres e miseráveis beneficiárias do BF que vivem em áreas de extrema pobreza –, que no livro encontram, graças à sensibilidade dos autores, um espaço de visibilidade e uma oportunidade de ser ouvidas.

Já no que diz respeito ao segundo deles, tão relevante quanto o primeiro, o fato de constatar, a partir dos discursos dessas mulheres, que a condição de beneficiárias do BF está longe de significar, na sua condição concreta de vida, que mergulhem nos preconceitos que políticas de combate à pobreza, em especial de transferência de renda, se vêm envolvidas pela sociedade, em particular pelos seus segmentos não pobres. “No caso brasileiro, o debate sobre o Bolsa Família é um bom exemplo de repetição histórica do preconceito e da força dos estereótipos” (p. 225). É isto que o texto combate de forma minuciosa e com fundamentação teórica e empírica: nossos preconceitos sociais arraigados numa sociedade patrimonialista. Assim é que somente duas das 150 entrevistadas declararam ter deixado de trabalhar depois de passarem a receber o benefício (portanto, o BF não estimula o “não trabalho”); o gasto do recurso é dirigido à alimentação (principalmente das crianças), e não ao consumo de bens supérfluos; boa parte delas consegue se libertar da violência doméstica, a partir do momento que contam com uma fonte de renda; a educação das crianças é valorizada, assim como sua saúde.

Finalmente, há a dimensão “libertadora” do acesso ao dinheiro, que abre espaço para a construção da autonomia desses sujeitos sociais, uma vez que representa uma base material imprescindível para tanto. Afirmam os autores: “(...) constata-se que o programa BF garante o direito à vida a milhões de brasileiros; não resolve, contudo, o problema da pobreza. Isso se destaca particularmente quando observamos a situação dos homens pobres no quesito renda regular e aumento de autoestima. Na verdade, os maridos, normalmente, não têm nenhuma perspectiva de trabalho e de melhora de vida; não possuem futuro nessas regiões nas quais se realizou a pesquisa. (...) São pessoas de vida precária em todos os sentidos: precariedade de vínculos, de sentimentos, de relações sociais sempre provisórias, pois provisórios são seus subempregos” (p. 185).

Vozes do Bolsa Família, pelo rigor teórico que fundamenta o tratamento dado ao discurso dessas mulheres, associado à sensibilidade dos pesquisadores, traz preciosos elementos para pensar em que consiste, efetivamente, a democracia social e política neste país. E mais que isso: que os caminhos até aqui trilhados apontam de certa forma na direção correta, mas ainda há muito a percorrer para que sejamos uma sociedade mais justa, que permita aos indivíduos terem projetos de futuro, para si e seus descendentes. Eis aí, portanto, uma leitura obrigatória.

Amélia Cohn é professora aposentada da USP e bolsista sênior do CNPq