Estante

2_patriotas_e_traidores.jpgAlém de pertinente, é oportuna a publicação desta antologia de textos variados do escritor norte-americano Samuel Langhorne Clemens, mais conhecido pelo pseudônimo de Mark Twain. É pertinente por explorar aspecto pouco conhecido da vida e da obra do autor de As Aventuras de Tom Sawyer e de seu amigo Huckleberry Finn, além de outras obras como Um Ianque de Connecticut na Corte do Rei Artur e O Príncipe e o Plebeu. É oportuna, pois vem em momento em que o justo antiimperialismo que se espraia pelo mundo, com fôlego renovado graças à invasão do Iraque perpetrada pela Casa Branca, com a ajuda de Tony Blair, pode tornar-se um antiamericanismo acrítico e fundado em preconceitos, esquecendo-se das notáveis contribuições para o pensamento libertário, para a democracia, para as artes, a literatura, as ciências e a cultura de um modo geral que tiveram origem nos Estados Unidos da América do Norte.

“Eu me recuso a aceitar que a águia crave suas garras em outras terras”, disse Mark Twain em entrevista, comentando a tomada das Filipinas pelo exército norte-americano, referindo-se a um dos símbolos mais conhecidos do país do Norte. Nada podia sintetizar melhor a natureza de seu pensamento, em que as considerações políticas estão inextrincavelmente imbricadas com a ética. Tornou-se ele um militante acendrado contra todos os imperialismos do fim do século XIX e do começo do XX, inclusive o que partia do próprio país natal. Escreveu, deu conferências, publicou relatos de viagens, deu entrevistas incansavelmente sobre o tema a partir da tomada de Cuba pelos norte-americanos em 1898. Foi duramente atacado por isso, considerado traidor de sua pátria e não poucas vezes teve de se defender pelos jornais. Houve até casos de censura de seus escritos, e isso quando ele já era autor consagrado e dos mais conhecidos e louvados no mundo inteiro. Nada abateu ou fez arrefecer seu ânimo, e ele prosseguiu em sua militância até a morte, em 1910, quando completava 75 anos de idade.

Mark Twain não “nasceu” antiimperialista. Quando da intervenção dos Estados Unidos em Cuba, depois do episódio suspeito da explosão do navio Maine1 no porto de Havana, o escritor apoiou a atitude do governo de seu país. Pensava que os Estados Unidos davam contribuição significativa para pôr um fim à dominação de outras terras pelas potências européias, e que isso estava de acordo com as tradições libertárias que haviam levado as originalmente treze colônias à independência no século XVIII. Nem mesmo a política de anexação territorial, que fez os Estados Unidos apossar-se de vastos territórios que a rigor deveriam pertencer ao México, demoveu-o da fé de que em seu país prevaleciam os ideais de Washington.

Entretanto foi o acordo firmado com a Espanha naquele mesmo ano que despertou a consciência do escritor para o fato de que os motivos que animavam o governo norte-americano nada tinham de libertá­rios. Ao invés disso, os Estados Unidos estavam, isso sim, se candidatando a ter seu quinhão no seleto clube de nações imperialistas que, naquele momento, espalhava suas tropas, seus domínios, seus produtos e sua coleta de matérias-primas pelo mundo inteiro.

Para essa tomada de consciência foi importantíssima a subseqüente intervenção dos Estados Unidos nas Filipinas, no mesmo ano, e os desdobramentos que se seguiram. As Filipinas também eram colônia espanhola, e a intervenção foi tema do mesmo acordo em que se selou a sorte de Cuba. O escritor ficou chocado com o desprezo dos Estados Unidos em relação aos patriotas filipinos. O governo norte-americano não só não reconheceu o governo independente instalado nas ilhas, como o combateu até sua derrubada e a prisão de seu principal líder, Emilio Aguinaldo, conseguida, como sói acontecer nesses casos, à traição. Por outro lado, “comprou” as Filipinas da Espanha por 20 milhões de dólares.

Mark Twain ficou particularmente chocado com o expediente de que se valeram os norte-americanos para prender Aguinaldo. Este já se encontrava refugiado nas montanhas, quando o exército norte-americano lançou contra ele uma expedição comandada por seus oficiais mas formada por soldados mercenários locais. Para evitar a perda do efeito surpresa, os perseguidores seguiam disfarçados, como se os norte-americanos fossem prisioneiros de uma força aliada de Aguinaldo. Acontece que pelo meio do caminho a expedição ficou à míngua, ameaçando perecer de fome e doenças. Os expedicionários então enviaram um pedido de socorro… a Aguinaldo! Este prontamente lhes mandou comida e remédios, achando mesmo que se tratava de uma coluna amiga. Refeitos, os expedicionários entraram no acampamento do líder filipino ainda disfarçados e, valendo-se da surpresa, mataram seus seguidores e fizeram-no prisioneiro. Além de condenar o gesto político, Mark Twain sublinhou com veemência a falta de caráter demonstrada pela atitude de pedir socorro a quem logo depois se ia matar ou aprisionar.

A partir desses dois episódios – Cuba e Filipinas – Mark Twain dedicou-se à militância antiimperialista. Não esteve só nesse esforço: juntou-se a outros militantes na Liga Antiimperialista fundada em Boston, em 1898, logo depois da assinatura do tratado com a Espanha. O escritor denunciou várias ações imperialistas: no Congo, na China, na África do Sul, no Caribe, na Oceania, no Havaí (então chamado de Ilhas Sandwich e depois anexado aos Estados Unidos como um estado da federação) e onde mais as potências fizessem sentir sua presença. Como assinala a organizadora do livro, Maria Sílvia Betti, a militância do autor não eliminou uma certa ingenuidade nacionalista de sua parte nem alguns preconceitos raciais ou culturais, que, em todo caso, eram os do seu tempo. Bateu ele sempre na tecla de que o imperialismo era uma traição aos verdadeiros ideais da nação norte-americana, fazendo sempre menção a uma pureza nacional de origem. Também manifestava ele certa dificuldade em entender culturas diferentes da ocidental, fosse em terras distantes, fosse em sua pátria, como no caso dos índios, que via com algum desprezo. Mas isso não deve anular o reconhecimento da energia positiva presente em seu pensamento, energia que depois foi escamoteada até mesmo por alguns de seus biógrafos, para jogar no esquecimento esse aspecto antiimperialista de seus escritos.

Deve-se notar também o modo como Mark Twain usava o humor em seus escritos. Alguns dos melhores são verdadeiras peças literárias de ironia e sagacidade quando, por exemplo, ele parodia os pensamentos do rei da Bélgica sobre o Congo ou do czar da Rússia sobre a repressão ao próprio povo depois da revolta de 1905. Vale-se ele aí do monólogo, desvendando o que seriam os “pensamentos secretos” desses governantes sobre suas atitudes políticas.

A edição vem acompanhada de muitas notas e informações cronológicas, além de ensaios compreensivos sobre o escritor, suas obras, suas idéias e sua presença no Brasil. A tradução está bem escrita e não apresenta, pelo menos numa primeira leitura, quaisquer falhas dignas de nota. É um livro indispensável à compreensão do alcance da obra e da biografia de um escritor que vem ajudando a formar os leitores brasileiros, jovens ou não, desde 1934, quando Monteiro Lobato publicou sua tradução-adap­tação de As Aventuras de Huck, seguida da de Tom Sawyer.

Flávio Aguiar é professor de literatura brasileira da Universidade de São Paulo