Estante

O mito da grande classe médiaUm estratégico exercício de desmistificação; numa palavra, talvez seja essa uma boa caracterização do novo livro do economista Marcio Pochmann. Dono de uma notável produção bibliográfica, e conciliando esforços de docência, pesquisa e gestão pública, Pochmann tem se destacado no embate contra o mito, amplamente reverenciado, de que nas sociedades capitalistas contemporâneas prevalece a tendência à conversão da classe trabalhadora em uma “grande classe média assalariada”. E no Brasil, nos últimos anos, tal mito teria adquirido contornos singulares, com a suposta ascensão de uma “nova classe média”.

Em sua crítica a tais noções, já sedimentadas no senso comum, o autor nos apresenta um estudo fortemente embasado em dados e análises estatísticas, voltado às condições concretas de reprodução das classes sociais, com vistas a combater o “voluntarismo teórico inconsistente com a realidade, salvo interesses ideológicos específicos ou projetos políticos de redução do papel do Estado” (p.45). Por conseguinte, de saída é evidenciado que um dos objetivos da obra é contribuir com a proteção do Estado ante os “ataques antidesenvolvimentistas”, que propõem a “abertura (comercial) passiva e subordinada”, o “ajuste fiscal permanente” (p.17), a privatização dos serviços e o desmantelamento de políticas sociais, pari passu à desindustrialização e à especialização econômica nos setores primários, como mandaria a velha teoria ricardiana das vantagens comparativas. Ao contrário, Pochmann defende o engajamento estatal em políticas de “reindustrialização” e na “reconfiguração qualitativa dos serviços públicos” (p.44), no sentido de garantir um crescimento econômico consistente e diminuir as desigualdades sociais.

O livro se divide em quatro partes. Na primeira, Pochmann expõe brevemente um conjunto de concepções acerca das classes sociais, e particularmente da classe média, de uma perspectiva histórica. O pano de fundo é o desenvolvimento do modo de produção capitalista, e nesse sentido são distinguidos quatro momentos fundamentais: o “capitalismo concorrencial”, o “capitalismo oligopolista”, o “capitalismo pós-industrial”, e o “capitalismo monopolista transnacional”. Nesta última fase, teria havido um expressivo deslocamento da produção industrial para os países periféricos, de modernização retardatária, decisivo para o surgimento de uma nova “divisão geográfica da classe média no mundo” (p.28). Tal inovação seria fruto de um relativo “esvaziamento” da produção industrial e do advento do neoliberalismo, marcado pelo desmantelamento das estruturas sociais públicas, pelo “avanço da globalização desregulada”, pela desregulamentação do mercado de trabalho, pela proliferação das formas de ocupação precária, pelo recrudescimento do desemprego, pelo bloqueio da incorporação dos ganhos de produtividade aos salários e pela prevalência da grande corporação transnacional, com ênfase nas atividades financeiras. A emergência de um sistema de “assalariamento multipolar”, somada à “massificação dos ensinos técnico e superior” e aos ataques às estruturas públicas de bem-estar social, teria conduzido a um “estilhaçamento da tradicional classe média não proprietária”.

Tais processos adquiriram determinações singulares na periferia do capitalismo, e o restante do livro é dedicado sobretudo à recente experiência histórica brasileira e à análise da evolução de sua estrutura social. Em meados do século 20, no Brasil, as elites se opuseram fortemente às “reformas civilizatórias realizadas nas economias capitalistas avançadas”, e lograram relegar a classe trabalhadora a uma “condição de subconsumo”, determinante para o padrão de desenvolvimento econômico que então prevaleceu. A despeito de um vigoroso crescimento da população assalariada, houve um descolamento entre as trajetórias da produtividade do trabalho e dos salários, havendo, por conseguinte, uma distribuição de renda da base para o topo da pirâmide social. É nesse contexto que surge uma classe média no Brasil, favorecida por um conjunto de políticas públicas voltadas às camadas populacionais de maior poder aquisitivo.

Segundo Pochmann, o arrocho salarial, o aumento do desemprego e do trabalho informal, bem como a redução do salário mínimo, e a crescente revolta contra o caráter autoritário do regime militar tiveram como consequência a consolidação de um “novo sindicalismo”, portador de um “projeto social-desenvolvimentista”, responsável por colocar em primeiro plano o combate à pobreza, a redistribuição de renda, as políticas de pleno emprego, a difusão do padrão do consumo de massas e a constituição do Estado de Bem-Estar Social (p.66). No entanto, para prevalecer, tal projeto teria de derrotar o projeto neoliberal, que deu continuidade às políticas antissociais da ditadura e aprofundou o sucateamento dos serviços públicos e a promoção de um “consumismo desenfreado” alimentado pela importação de bens e serviços, como resultado de um processo de abertura comercial que teria precipitado um processo de desindustrialização no Brasil.

O êxito desse “novo desenvolvimentismo”, com a eleição presidencial de Lula, em 2002, teria redundado na implementação de vigorosas políticas de elevação do salário mínimo; na criação de programas sociais como o Bolsa Família; no fomento à agricultura familiar; na expansão do crédito ao consumo, fruto do fortalecimento e da complexificação do sistema bancário (p.93); e em políticas de pleno emprego, que conduziram a um aumento dos empregos formais, fortemente concentrados na faixa de rendimento de até 1,5 salário mínimo (p.116). Em meio a esses processos, favorecidos pela diminuição do tamanho médio das famílias, pelo aumento da participação feminina no mercado de trabalho e pela queda do desemprego, teria havido uma inflexão na trajetória da estrutura distributiva brasileira, com a “volta da mobilidade social”, entendida como uma mudança na distribuição de renda, e sobretudo a elevação da renda na base da pirâmide social. Todos esses fatores, somados à proliferação e ao barateamento dos bens de consumo e dos serviços – fruto da consolidação de cadeias globais de produção, favorecidas pelo desenvolvimento de novas tecnologias de transporte e comunicação –, cada vez mais acessíveis aos estratos inferiores da pirâmide social, teriam competido para o fortalecimento da classe trabalhadora, e não para o surgimento de uma nova classe média brasileira; o que mais uma vez se revelaria como um mito.

Apesar de reconhecer que a noção de classe não se circunscreve à posição ocupada pelos indivíduos no interior do processo produtivo e ao montante de renda por eles auferido, devendo incluir também outras determinações, relativas à identidade estabelecida entre seus membros, ao status social de que gozam e ao compartilhamento de certas trajetórias pessoais e geracionais, o estudo de Pochmann permanece voltado quase que exclusivamente à dimensão propriamente econômica do tema, em um registro empírico-descritivo. Desse modo, caberia mobilizar também, de maneira crítica ou afirmativa, a concepção marxiana de classe como conceito analítico – que nos termos de A Miséria da Filosofia impõe a distinção entre “classe em si” e “classe para si” –, inextricável da apreciação da dinâmica global da acumulação de capital, e com uma dimensão eminentemente política, referente à reprodução ou à contraposição revolucionária da sociabilidade capitalista.

Ademais, Pochmann emprega, sem problematizar, algumas noções bastante polêmicas e polissêmicas, como a de sociedade de serviços ou a de sociedade pós-industrial, o que dá margem a imprecisões e a incompreensões acerca do arcabouço categorial que ele mobiliza. A superação de tais insuficiências, assim nos parece, daria maior força a seus propósitos e a suas conclusões e favoreceria o debate intelectual que urge travar em torno das tão importantes questões que ele levanta e analisa na obra.

Gustavo Moura de Cavalcanti Mello é graduado em Economia pela FEA-USP, mestre e doutor em Sociologia pela FFLCH-USP