Estante

Derrubando o mito da “ditabranda”

1964 História do Regime Militar BrasileiroO livro 1964: História do Regime Militar Brasileiro, de Marcos Napolitano, traz uma síntese do período de 21 anos em que os militares, junto com seus aliados civis, definiram os rumos do país. Trata-se primordialmente de uma obra de história sociopolítica e cultural, mas em momento algum as questões econômicas são deixadas de lado, o que configura um de seus méritos, levando em conta sempre a interação das questões políticas, sociais, culturais e econômicas na realidade concreta da construção do regime. Dividida em doze capítulos, tem oito deles voltados para a análise sociopolítica, contemplando o governo Jango, o próprio regime militar e o período pós-redemocratização; três para a questão político-cultural pós-1964; e um exclusivamente para a análise socioeconômica do regime, com ênfase no período do “milagre brasileiro”.

Durante todo o livro fica claro quem são os interlocutores do debate travado pelo historiador Marcos Napolitano, no caso os liberais e seu discurso hegemônico, até os dias de hoje, sobre o que foi o regime militar brasileiro, do golpe à redemocratização. Vale destacar os pontos principais desse debate. De início, o autor mostra como o golpe civil-militar, muito além de se configurar como uma “reação” à falta de habilidade política do presidente Jango, ou ao radicalismo das esquerdas – ainda que ele admita que isso tenha acelerado o processo –, já se configurava como um projeto de poder que almejava uma modernização conservadora para o país, levando a um novo ciclo de acumulação do capitalismo brasileiro sem mudar a estrutura social do país.

Dessa forma, o alvo das forças conservadoras, grupo heterogêneo formado por civis e militares, liberais e autoritários, empresários e políticos, classe média e burguesia, era antes de tudo o projeto reformista distributivista do governo Jango, ainda que no discurso ideológico a luta fosse contra os comunistas. Citando Napolitano, “todos unidos pelo anticomunismo, a doença infantil do antirreformismo dos conservadores”. Ou seja, mirava-se no comunismo para atingir o reformismo.

O autor ressalta também o papel da grande imprensa no golpe, afinada historicamente à linha liberal-conservadora que, a partir de 1963, se articula na chamada Rede da Democracia, batendo na tecla de que as “reformas de base” defendidas pelo governo nada mais eram do que a antessala para o comunismo, preparando o clima para que os golpistas entrassem em ação. A única exceção, vale a pena citar, foi o jornal Última Hora, fiel ao trabalhismo janguista até o fim. Segundo Napolitano, a imprensa “pulará do barco” golpista poucos meses após o golpe, ao se dar conta de que aquela não era uma mera “intervenção cirúrgica” dos militares que iria “sanar” o ambiente político e rapidamente devolver o poder aos civis, como o foi em outros momentos da história brasileira, mas sim um projeto de poder de longo prazo.

No momento da construção da memória do regime na segunda metade dos anos 1970, a imprensa, assim como boa parte dos civis que apoiaram o golpe, se colocará como vítima desde o início, procurando negar seu entusiasmo e adesão. Isso fica claro até hoje no posicionamento público de grandes jornais como O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo sobre o assunto. Outra questão importante observada por Napolitano, focando no debate conceitual, é a diferenciação da natureza do golpe e do regime que nasceu a partir dele. Para ele, trata-se claramente de um golpe civil-militar nascido da confluência heterogênea de agentes civis com os militares, mas o regime, no decorrer da sua estruturação, não seguiria essa lógica, já que no centro decisório de suas ações, ainda que com apoio dos civis, a palavra final estaria sempre com os militares, conformando assim um regime de caráter militar.

O autor desconstrói a ideia de que o regime de 1964 até 1968 teria sido uma “ditabranda”, ideia defendida em editorial pela Folha de S.Paulo. Mais uma vez, bate de frente com a versão liberal de que o governo Castelo Branco não teria sido tão truculento, mas até bastante permissivo, com os setores intelectuais e culturais e a ditadura “de fato” só se daria em 1968, após o AI-5. Demonstra como o primeiro governo do regime militar foi extremamente autoritário com a cassação de mandatos, aposentadorias compulsórias no funcionalismo público, em especial nas universidades, e com a repressão e desmantelamento dos movimentos sociais, enquanto mantinha certa liberdade para os setores intelectuais e da cultura.

Segundo o autor, isso se deu pelo fato de o governo não querer perder o apoio de sua base social, que vinha das classes médias em um primeiro momento, que sempre viram com reprovação a censura, enquanto punha em prática o projeto de eliminação das elites reformistas ligadas ao janguismo e dos movimentos sociais enquanto agentes ativos da política. Logo, o período de 1964 a 1968 foi um dos mais violentos do regime, derrubando o mito da “ditabranda” e demonstrando que já existia um projeto de poder autoritário colocado desde 1964.

Na mesma chave de interpretação, Napolitano põe também em xeque a ideia de que o governo Geisel teria desde o início um projeto de “abertura”. Demonstra como a repressão nesse período continuou sendo brutal mesmo após a derrota da guerrilha de esquerda, citando, por exemplo, as Operações Radar e Jacarta, que tinham como alvo a eliminação física dos quadros do Partido Comunista Brasileiro, sendo que muitos membros do então Comitê Central do PCB continuam desaparecidos.

Napolitano mostra como os “porões” funcionaram como parte integrante do sistema político do regime, e não como mero “excesso” por parte de alguns policiais, como quer a memória liberal e conservadora, o que nos coloca problemas quanto ao nosso modelo de segurança pública até hoje. Para o autor, a “abertura” só ocorreu de fato devido à reconfiguração da resistência na sociedade civil, fruto também da crise econômica potencializada pelas políticas de arrocho salarial, somadas à crise do petróleo internacional, tendo como destaque a rearticulação do movimento operário nas greves do ABC no final dos anos 1970.

O livro ainda traz uma importantíssima contribuição para a compreensão da cultura durante o regime militar, antes e depois do AI-5. A grande questão que se impõe é a hegemonia da esquerda nos meios culturais – em especial a corrente nacional-popular ligada ao PCB antes de 1964 –, sua crise pós-AI-5 e o embate com outras correntes, principalmente o tropicalismo. O autor mostra como a hegemonia cultural da esquerda conseguiu se manter durante todo o regime, sendo crucial tanto para a consolidação da indústria cultural no país quanto para a conformação da memória desse período a partir da segunda metade dos anos 1970, impedindo que o regime conseguisse construir uma memória favorável ao golpe de 1964. Para isso também foi importante a ação contrária ao regime por parte de intelectuais liberais, jornalistas e escritores, na imprensa alternativa, que acabou confluindo para uma mesma chave de interpretação do regime junto à esquerda, principalmente aquela ligada à tradição comunista do PCB.

Por fim, o livro de Marcos Napolitano já nasce como referência no que diz respeito à análise dos “anos de chumbo” da história brasileira. Em tempos de questionamento sobre o que ainda resta da ditadura, com a Comissão da Verdade investigando as violações de direitos humanos perpetradas pelo Estado naquele momento – e, consequentemente, abrindo mais um capítulo na luta pela memória do período – e com o debate sobre a desmilitarização da PM ganhando força após as manifestações de junho de 2013, a leitura dessa obra se torna não apenas necessária, mas obrigatória para entendermos as questões colocadas pela história recente brasileira, nascidas de uma transição para a democracia que ainda não acabou.

Vinícius Juberte é mestrando pelo Programa de História Econômica da Universidade de São Paulo