Nesse momento de intensa reflexão em virtude do V Congresso do PT, mas também da crise política que estamos atravessando, nos inspiramos em Rosa Luxemburgo para debater as tarefas e desafios do partido para o próximo período.
Precisaremos ceder menos ao conformismo e à conciliação de classes, revisar rumos e pressupostos equivocados, investir no pluralismo interno, no enfrentamento à burocratização partidária e à centralização decisória, em geral apresentada com roupagem salvacionista.
Não devemos esquecer que nossa vitória em 2014 foi apoiada pela combinação da parcela da população que rompeu os grilhões da miséria com a juventude que foi para as ruas e redes sociais defender um projeto progressista de presente e futuro. A aliança popular estratégica desses segmentos com os trabalhadores e trabalhadoras deve ser a base essencial de sustentação do governo Dilma. E todas as medidas tomadas devem perceber o impacto que podem gerar nesses segmentos.
O Brasil de hoje é radicalmente diverso do que foi nas décadas passadas, em razão inclusive das mudanças positivas que construímos, e para dialogar com os novos anseios do povo a esquerda precisará passar por uma necessária reinvenção que conjugue o combate tanto às desigualdades materiais quanto às pós-materiais. O enfrentamento às desigualdades sociais deve seguir como parte estruturante do nosso programa, que deverá se abrir ao campo de demandas identitárias, libertárias e de novos direitos que se descortinou no último período.
No plano do combate à desigualdade social, durante os últimos anos inovamos ao negar o receituário neoliberal e ortodoxo. Defendemos o emprego por meio de investimentos em capital fixo (infraestrutura) e humano e sustentamos o investimento em políticas sociais. Em tempos de crise, porém, será preciso fazer escolhas e contrariar interesses para dar continuidade a essas políticas e avançar. Só será possível crescer e distribuir renda com reformas estruturantes como a tributária, a urbana, a agrária, a política, a taxação das grandes fortunas e a democratização da mídia. Também será necessário enfrentar a política de terceirizações, reduzir a jornada de trabalho para 40 horas semanais e extinguir o fator previdenciário, assegurando dignidade aos trabalhadores e às trabalhadoras.
A conjuntura é desfavorável à realização dessas mudanças estruturais, e dois aspectos contribuíram para compor a atual correlação de forças: o afastamento do PT das lutas sociais e dos movimentos organizados e a adesão a um discurso de preferência pela técnica em desfavor da política. No primeiro quadro, podemos incluir a dificuldade de implementarmos políticas reais de democracia participativa – que é muito mais do que as importantes conferências nacionais – e de construirmos as transformações do país por meio do aprofundamento de uma cultura democrática e da consciência de classe. No que diz respeito ao desprezo à política, este se revela na desatenção às bancadas petistas no Parlamento, no descompromisso com a manutenção de bases sociais com vistas à ampliação do número e da qualidade de nossa atuação no Congresso Nacional, fatos que resultaram no crescimento das bancadas conservadoras e num comando na Câmara dos Deputados voltado à permanente construção de iniciativas de desestabilização e retrocessos.
Experimentamos os limites da política de conciliação de classes, e, ainda que tenhamos avançado muito, devemos reconhecer que ela nos impede de seguir adiante. Não se trata de um debate sobre as alianças que fizemos, mas sobre a dificuldade de a hegemonia política da esquerda perdurar num quadro amplo de alianças. A melhor possibilidade para destruirmos as ações golpistas da direita e de setores oportunistas que corroem o governo por dentro é combinar a construção de uma frente ampla, democrática e de esquerda na sociedade, com força para influenciar as instituições, sobretudo o Parlamento. É ilusório investir exclusivamente na sustentação parlamentar, sem ampliar as bases sociais de apoio ao governo. É de altíssimo risco assumirmos a agenda dos conservadores na economia ou em qualquer outra área, tanto por comprometer a continuidade das nossas políticas como pelo potencial de afastamento de nossa base social. Ou revisamos nossa tática e nos reposicionamos no cenário político, ou seguiremos os passos dos partidos social-democratas, que se desconectaram da luta social e tornaram-se incapazes de disputar hegemonia para a construção de um outro mundo possível.
Os desafios são inúmeros, e infelizmente o governo tem muitas vezes se colocado tímido diante dessas necessidades. Não é razoável um cenário de cortes de investimentos, de iniciativas econômicas de caráter recessivo. Ainda que no Congresso Nacional apoiemos nosso governo, não podemos deixar de nos perguntar qual o sentido de realizar um ajuste fiscal que atinge a base da pirâmide, corta R$ 70 bilhões em investimentos da União, se o aumento de 6 pontos percentuais na taxa Selic desde o final de 2014 onera o pagamento dos juros em R$ 120 bilhões. Estamos fazendo escolhas que podem vir a inviabilizar as políticas sociais e estimular o setor privado a deixar de investir na produção e na geração dos empregos, para se voltar à especulação financeira.
No centro desta contínua crise alimentada no Parlamento e na seletividade dos meios de comunicação contra nossos ideais estão questões que vão além da ordem política e econômica. A satisfação das demandas materiais primárias de amplos setores possibilitadas pelo combate à pobreza permitiu a popularização de outras, como a defesa do desenvolvimento ambientalmente sustentável, do acesso à cultura, do direito à cidade, à participação social, à qualidade de vida e à diversidade. Se os setores mais retrógrados voltaram a ganhar espaço, os movimentos de luta por reconhecimento, respeito e liberdade também têm mostrado sua força social. Esses novos direitos já começam a adentrar nosso discurso, mas muito ainda precisa ser feito para lhes darmos consequência prática, seja como governo, seja enquanto partido.
As violações sofridas pelos segmentos sociais historicamente discriminados vão desde a negação de oportunidades de emprego e educação, ao gozo de ampla gama de direitos humanos, até agressões sexuais, tortura e homicídios. Esses abusos tendem a ser agravados por outras formas de violência baseadas na sobreposição de situações de vulnerabilidade. Precisamos dar resposta a esse estado de coisas, não podemos mais conviver com o racismo, em especial o institucional, e o genocídio da juventude negra; com a violência doméstica, a mercantilização da vida das mulheres e a guerra constante contra direitos sexuais e reprodutivos; com a homofobia que mata, mutila e destrói vidas todos os dias; e com tantas outras chagas estruturantes de nossa sociedade, fundamentadas no preconceito e na intolerância.
O PT, por sua vez, não pode incorporar um discurso utilitário com relação às mulheres, aos negros e negras e à juventude e assumir a postura conservadora de revisão da paridade de gênero, das cotas étnico-raciais e geracionais, culpabilizando esses setores pelos problemas que enfrentamos. Aliás, o diagnóstico da crise poderia ser o exato oposto: de que a permanência dos mesmos dirigentes na estrutura partidária durante vários anos estagnou a visão do PT sobre a sociedade, e por isso seria necessário encampar um processo de renovação de quadros e oxigenação do partido.
Devemos iniciar um processo real de empoderamento daqueles e daquelas que ao longo desses 35 anos ocuparam posição de subalternidade na nossa organização, sem que isso signifique prescindir de quadros que muito têm a contribuir em diferentes lugares e funções. Precisamos engendrar esforços para a construção de uma juventude de massas e com autonomia política, que tenha condições de apresentar suas formulações críticas e pressionar o partido para a esquerda.
Acreditamos que nesse contexto de mudanças internas seremos mais capazes de afastar o pragmatismo sem critérios, promover uma autocrítica profunda sobre a adesão à política feita mais com recursos financeiros do que com ação militante e dirigente e rejeitar em qualquer lugar e com total veemência a corrupção, como sempre o fizemos, em nossa história. Não podemos permitir que continuemos sob ataque nesse campo!
Precisamos superar o atual formato de escolha das direções do partido, que a cada processo se torna mais burocrático e despolitizado, aprofunda nossas contradições e traz para o seio do PT distorções e vícios característicos da democracia formal burguesa que tanto criticamos. Reafirmamos ainda a defesa do fim do financiamento empresarial da política (campanhas e partido).
O tempo não para, e a ofensiva de direita está em curso. Nossa melhor alternativa para vencê-la, mais uma vez, é reagirmos, recusando a estagnação como destino, seja na vida partidária, seja nos governos que nos foram confiados pelo povo. A inquietude define a esquerda e o PT; se ela morre, o projeto mais generoso de pão, terra, liberdade e direitos humanos sucumbe com ela. A crise em curso chegará ao seu final. Se a solução se der pela esquerda, renovaremos nosso projeto e a esperança de milhões de brasileiros e das forças progressistas no mundo. Se for pela direita, a conta terá sido paga pelos pobres e destruiremos nosso próprio legado e nosso projeto de futuro. O PT sabe o rumo a seguir.
Jorge Branco é membro do Diretório Nacional do PT
Maria do Rosário é deputada federal (PT-RS) e membro do Diretório Nacional do PT
Tássia Rabelo é coordenadora nacional de Direitos Humanos da Juventude do PT